O desenvolvimento do capitalismo na América Latina e a questão do Estado, Agustín Cueva

somos de acá
17 min readApr 22, 2021

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Trecho traduzido de ‘Problemas del Desarrollo’, revista del Instituto de Investigaciones Económicas de la UNAM, 1980.

I

O desenvolvimento do capitalismo nas áreas subdesenvolvidas e dependentes não está regido por leis específicas, distintas das que governam qualquer desenvolvimento capitalista. Isto significa, entre outras coisas, que não existe lei alguma que impeça a reprodução ampliada do modo de produção capitalista, portanto de suas contradições, nesta região do mundo. A pergunta sobre se pode ou não haver desenvolvimento na América Latina é, por conseguinte, uma pergunta que carece de sentido.

Está claro que, visto em seu conjunto, o capitalismo vem desenvolvendo-se na América Latina a ritmos inclusive superiores aos de outras áreas integrantes do sistema e que, em termos sociais, nossas estruturas de classe continuam evoluindo em uma direção cada vez mais capitalista.

O fato de que este desenvolvimento desapontou as expectativas de uma melhor distribuição da propriedade, do salário e do poder, que os desenvolvimentistas de diversas tendências alimentaram faz 15 ou 20 anos, é rigorosamente um problema que concerne à história das ideologias e suas ilusões, mas não é um caso de aberração dentro do desenvolvimento capitalista. O desenvolvimento deste modo de produção está regido em todos os lugares por leis objetivas de acumulação, concentração e centralização do capital, e jamais houve qualquer suporte científico que os autorizasse a pensar que a América Latina pudesse escapar de tais leis.

E o mesmo poderia ser dito a respeito de uma série de outras questões. Imaginar, por exemplo, que o capitalismo pudesse favorecer aqui a criação de economias nacionais autônomas, era tão ilusório como pensar que esse mesmo desenvolvimento é capaz de suprimir as especificidades de cada formação nacional, com seus peculiares ritmos históricos, suas particularidades e contradições. De tal sorte que tampouco surpreende o fato de que, ao mesmo tempo em que a América Latina seguiu um processo de acelerada imbricação de suas economias na nova fase do desenvolvimento do capitalismo mundial, tem igualmente experimentado um processo de desenvolvimento extremamente desigual desses países entre si: casos de estancamento de economias como a da Argentina, Uruguai ou Peru; e casos de desenvolvimento acelerado de economias como a brasileira, a equatoriana, a dominicana e a venezuelana, por exemplo.

E o fato é que, se por um lado existe uma economia capitalista mundial da qual sem dúvida somos integrantes, por outro lado não existe uma formação econômica e social capitalista mundial, mas sim uma cadeia de países.

II

Das reflexões precedentes não se pode desprender, inclusive, da conclusão que o desenvolvimento do capitalismo na América Latina ocorre de maneira exatamente idêntica a dos países imperialistas. As condições históricas, tanto internas quanto externas, são naturalmente distintas, e elas determinaram e seguem determinando modalidades específicas de desenvolvimento do modo de produção capitalista na América Latina, que é precisamente o que nos interessa realçar. Porém, ao fazê-lo, é preciso ter cuidado para não confundir o que em rigor constitui um problema teórico e o que é propriamente um problema histórico. Como escreve Lenin a propósito da teoria da realização e da questão dos mercados exteriores:

Na realidade, entre estes problemas não há nada em comum. A questão da realização é um problema abstrato vinculado à teoria do capitalismo em geral. Que tomemos somente um país ou o mundo todo, as leis fundamentais da realização descobertas por Marx são sempre as mesmas. O problema exterior ou do mercado exterior é um problema histórico, um problema das condições concretas de desenvolvimento do capitalismo em tal ou qual país, em tal ou qual época.

Agora bem, são estas <condições concretas> a que se refere Lenin que, ao constituir uma historicidade comum dos países latino-americanos, nos permite localizar-nos em certo nível de abstração do qual podemos captar a especificidade do desenvolvimento latino-americano. Não se trata, como dito anteriormente, do nível universal regido por leis gerais do modo de produção capitalista, nem do nível singular, que compreende as determinações mais peculiares de cada formação nacional; mas sim de um nível intermediário, o do particular, em que aquela historicidade comum se converte em uma problemática comum, que define a fisionomia própria da região dentro da grande <corrente> capitalista imperialista mundial.

III

A especificidade do desenvolvimento do capitalismo na América Latina se origina em dois ordenamentos de fatos históricos que constituem suas determinações particulares:

  1. A existência de uma matriz estrutural heterogênea que primeiramente se caracteriza não somente pelo desenvolvimento marcadamente desigual do capitalismo, mas também pela complexa presença de modos de produção pré-capitalista que sem dúvida deram um caráter específico a todo o processo de desenvolvimento, sobretudo o próprio decurso do capitalismo pela via reacionária que se deu. No momento atual a presença já residual dos modos de produção pré-capitalistas se expressa, sobretudo, através da subsistência de vastos setores econômicos submetidos somente formalmente ao capital (os ‘polos marginais’ de que falava Aníbal Quijano em algum de seus trabalhos).
  2. Os violentos e contínuos ‘reajustes’ que sofreu e sofre esta matriz em função da sua inserção subalterna no sistema capitalista imperialista mundial, fato que ao mesmo tempo expressa, força e ‘deforma’ a lógica interna de desenvolvimento de nossas sociedades. Por ‘deformação’ entende-se, neste caso, uma acentuação muito marcada da lei de desenvolvimento desigual do capitalismo, que chega a configurar verdadeiros pontos de ‘atrofia’ e ‘hipertrofia’ simultâneas no aparato produtivo latino-americano.

Estes dois ordenamentos de fatos se encontram intimamente entrelaçados e todo o segredo da análise dialética consiste em captar tanto sua intrincada vinculação orgânica como também o alcance e sentido de suas constantes mutações. Para isso convém evitar dois erros frequentes: o de dissolver os problemas de algum desses ordenamentos no outro, e o de analisar sua relação em termos sistêmicos, ou seja, como se se tratassem de conjuntos de relações não contraditórias.

A articulação de vários modos de produção, por exemplo, por mais que a partir do último terço do século XIX comece a caracterizar-se por um predomínio cada vez maior do modo de produção capitalista, não deve ser concebida como uma simples ‘refuncionalização’ do pré-capitalismo pelo capitalismo. O que na verdade se dá é uma trama particular de determinações recíprocas que em última instância configuram uma modalidade específica do desenvolvimento do capital.

O mesmo poderia dizer-se a respeito do problema da inserção de nossas sociedades no sistema capitalista imperialista mundial. Subordinadas e tudo o mais, estas sociedades possuem perfis e ritmos básicos próprios (os de suas lutas de classes, especialmente) que geram toda uma série de ‘descontinuidades’ e ‘conflitos’, contradições naquele processo de inserção. As várias determinações que aqui intervém configuram também modalidades específicas no seio de uma relação mais geral, que é a dos países imperialistas para com os países submetidos a sua dominação.

Agora, bem, o que importa destacar é que um processo histórico assim determinado se caracteriza, não precisamente por sua ‘falta de desenvolvimento’, mas sim por um tipo de desenvolvimento capitalista em certo sentido impetuoso, mas que acumulou uma constelação muito especial de contradições, que terminam por converter estes países em verdadeiros elos fracos da corrente capitalista imperialista mundial, no sentido leninista do termo, ou seja, em pontos de ‘condensação’ onde as contradições já próprias do capitalismo em seu estágio mais avançado — monopolista — se somam às fases ou estágios anteriores, incluindo as enormes sequelas do pré-capitalismo; e onde a própria ‘questão nacional’ não foi ainda resolvida, em razão da mesma situação colonial, semicolonial ou de dependência.

Nesta ótica analisaremos, portanto, o assunto que agora interessa diretamente: o desenvolvimento e a natureza do Estado na América Latina.

IV

Neste ponto, convém deter-se a formular duas proposições importantes de ordem geral referentes ao problema do Estado e das formas de dominação no sistema capitalista:

  1. A democracia burguesa relativamente sólida e estável não constitui a superestrutura ‘natural’ do modo de produção capitalista, mas sim é a modalidade que a dominação burguesa logrou assumir nas áreas capitalistas ‘centrais’ (elos fortes), beneficiárias da enorme massa de excedente econômico extraído do resto do mundo; ou, temporalmente, em alguns países capitalistas ‘periféricos’ (elos considerados fracos) que obtinham uma vantajosa participação conjuntural na partilha do excedente. Fora destas situações que jamais chegaram a involucrar mais de vinte países, a superestrutura ‘natural’ do capitalismo não foi precisamente a democracia, mas sim seu extremo oposto. Assim como existe uma lei de desenvolvimento desigual do capitalismo, existe também uma lei de desenvolvimento desigual de sua superestrutura estatal e, portanto, de desenvolvimento desigual da democracia burguesa. E o que caracteriza em última instância o Estado burguês não é sua forma, democrática ou totalitária, mas sim sua necessidade de assegurar a reprodução ampliada do modo de produção capitalista, em condições sempre historicamente determinadas e de acordo com o lugar que cada formação econômico-social ocupa no seio da corrente capitalista imperialista mundial. Fora desta ‘localização’, recordemos enfaticamente, o Estado capitalista essencialmente não existe; é uma abstração indeterminada, que não corresponde a nenhuma entidade real.
  2. Os conceitos de dominação, coação e hegemonia devem ser manejadas com a devida cautela. De uma parte, é preciso ter cuidado de não apresentar os conceitos de dominação e de hegemonia como contrários, posto que o primeiro engloba o segundo como um de seus aspectos: a hegemonia burguesa é um aspecto ideológico da dominação burguesa. De outra parte, não cabe esquecer que coação e hegemonia são somente dois momentos de um único processo histórico, cujo desenvolvimento desigual chega a determinar o predomínio de um ou outro destes ‘momentos’, a depender do elo capitalista de que se trate: nos elos fortes, a tendência é do predomínio da hegemonia e nos elos fracos, a tendência é à coação. Por qual motivo? Uma breve revisão do ‘caso’ latino-americano nos permitirá compreender melhor a situação.

V

Expressão de um processo de características já assinaladas na exposição III, o Estado latino-americano não poderia deixar de adquirir uma fisionomia específica ainda que somente pelo fato de que as determinações universais de todo Estado burguês se somaram às determinações particulares. A própria natureza da ‘sociedade civil’ latino-americana impôs uma ‘sobrecarga’ de tarefas à instância política encarregada de assegurar sua coesão e reprodução. O sistema de dominação garante que tal Estado é a expressão, mas tratando ao mesmo tempo de superar as profundas brechas que a acentuada heterogeneidade estrutural produzia na própria classe ou bloco de classes dominantes: forjar as condições necessárias para o estabelecimento e vigência do ‘pacto’ neocolonial e, simultaneamente, buscar uma maneira de ‘regular’ as fissuras, desigualdades e defasagens internas que o próprio ‘pacto’ acentuava; condensar e expressar as tendências dominantes em cada formação social mas também ‘adiantar-se’ em certo sentido a elas, sob a luz das perspectivas abertas pelo desenvolvimento dos países capitalistas mais avançados; tratar, enfim, de ‘arrumar’ as bases de uma hegemonia que a sociedade civil era incapaz de gerar por sua própria heterogeneidade, mas sem deixar de recorrer constantemente à ‘força da lei’ e as vezes às ‘leis da força’, para evitar que as múltiplas ‘descontinuidades’ (também culturais) e contradições acumuladas se tornam verdadeiras rupturas revolucionárias: aqui estão algumas das tarefas específicas que o Estado latino-americano teve que cumprir em seus cem anos de desenvolvimento capitalista.

Em tais condições, não é uma causalidade que nossos Estados adotaram de modo geral uma forma ‘autoritária’ ou que apareceram como uma real ‘protuberância’ política, demasiadamente importante no tocante à ‘sociedade civil’. Frente à debilidade das outras ‘trincheiras e fortificações’ da classe dominante, o aparato estatal em geral e seu braço militar, particularmente, terminaram por converter-se na primeira e também na última fortaleza do sistema. Por isso em nossos dias, igual se faz há um século, o chamado ‘Estado de exceção’ se faz regra.

Conceitos como os de ‘autoritarismo’ e ‘ditadura’ são demasiadamente formais e gerais para caracterizar a um Estado capitalista que sofreu sensíveis modificações desde sua fase inicial ‘oligárquica’ até sua situação atual: em cada momento de sua evolução esse Estado teve tarefas muito concretas a cumprir, em função das correspondentes etapas pelas quais atravessou o desenvolvimento do capitalismo na América Latina, e é isso que interessa analisar neste caso para a etapa atual.

VI

O perfil do Estado latino-americano atual só pode compreender-se se leva-se em conta que o esgotamento de toda uma fase de desenvolvimento capitalista (vale dizer, de determinada modalidade de atuação) abriu em nossas sociedades uma situação de crise aguda que pôs na ordem do dia duas opções: a de uma mudança revolucionária do sistema imperante ou a de sua reestruturação em termos social e politicamente reacionário, mas que aponta ao estabelecimento de uma nova fase de desenvolvimento capitalista.

Não creio que seja necessário insistir aqui em algo que é conhecimento de todos: a diversidade e crescente amplitude da luta social na década de sessenta e setenta, a qual fez acentuar o caráter repressivo do Estado latino-americano. Insistirei em outro aspecto da questão, ou seja, no papel que o Estado foi adquirindo como ‘remodelador’ da sociedade toda.

A primeira tarefa que neste sentido começou a cumprir o Estado na maior parte dos países latino-americanos foi a de cancelar de uma vez por todas o projeto de desenvolvimento nacional autônomo, implantando em seu lugar um modelo de desenvolvimento ‘associado’, ou seja, perfeitamente passivo a uma perspectiva de transnacionalização dos setores-chave da nossa economia. É certo que alguns países desenharam uma conjuntura de projetos burgueses que pareciam marcar uma trajetória oposta, de corte mais ou menos nacionalista, mas que tiveram duração efêmera (casos de Peru, Equador, Honduras). O movimento geral foi na outra direção, implicando em pelo menos duas coisas:

  1. A reestruturação do bloco burguês, em cujo seio a parcela monopolista adquiriu plena primazia. A respeito disso é preciso advertir algumas questões. De uma parte, não se trata unicamente da parcela burguesa estrangeira, mas também da parcela burguesa monopolista nativa, que sem dúvida foi conformando-se com o curso do desenvolvimento capitalista latino-americano. De modo que agora o capital imperialista já não se apoia, como antes, em um setor burguês local simplesmente ‘comprador’ intermediário, mas sim em um parceiro comercial certamente menor, mas com sua mesma natureza econômica. Rigorosamente a burguesia ‘compradora’ tende a desaparecer do cenário histórico latino-americano, onde a parcela principal da burguesia se desvencilhou do nível de burguesia agrária, industrial e comercial, ao plano de burguesia monopolista. É falso, portanto, que o Estado latino-americano atual represente uma aliança de si mesmo com o capital estrangeiro sem uma determinação interna de classes; como falsa é a tese de que através desse Estado se expresse uma ‘burguesia burocrática’ definida como tal por sua inserção no aparato estatal. De fato, o aparato burocrático é a expressão do predomínio da fração monopolista transnacional, tendo como um de seus componentes o setor monopolista nativo.
  2. Uma questão distinta, e desde já definidora da fase atual do desenvolvimento do Estado latino-americano, é a fusão da força política com a força econômica do capital monopolista, fato que equivale à conformação de um capitalismo monopolista de Estado. Insisto nessa questão, já que ela parece definir a evolução de nosso Estado de maneira muito mais precisa que seus traços ‘burocráticos’ ou sua ideologia de ‘segurança nacional’, que em todo caso derivam do capital monopolista de Estado, e não o inverso. As modalidades concretas de ação deste capitalismo monopolista de Estado não são estritamente idênticas às que se registram nos países imperialistas, em virtude da própria condição submissa de nossas formações nacionais.

VII

Definido assim o caráter de classe desse Estado, estamos em capacidade de melhor compreender o modelo econômico que se busca implantar, assim como as tarefas que o Estado precisa cumprir para isto.

Nesta perspectiva o primeiro que convém esclarecer é que não se trata somente de um processo de transnacionalização da propriedade, mas sim da transnacionalização de toda a estrutura econômica. Isso quer dizer que o desenvolvimento do aparato produtivo obedece mais que nunca a um movimento do sistema capitalista em seu conjunto, e não a requerimentos estritamente nacionais. Com razão se fala de uma nova divisão internacional do trabalho, que transfere importantes setores da produção industrial em direção às áreas dependentes, em um movimento que desde logo não obedece a designações arbitrárias, mas sim a novas condições de valorizações do capital que se criou nessas áreas.

Estas novas condições de valorização são um produto histórico complexo, de que entre suas questões poderiam ser assinalados os seguintes componentes:

  1. Um resíduo de vantagens ‘naturais’, que em síntese se reduz à existência de determinadas matérias primas ou ao redor de certos centros hegemônicos, sempre que se somam outros fatores.
  2. A existência de um mercado local de alguma magnitude, assim como de certas ‘economias externas’.
  3. Sobretudo, a existência de mão-de-obra barata, inclusive de certa qualificação, e de seguridade política para os investimentos estrangeiros.

As vantagens naturais escapam da ação do Estado, mas a existência das demais condições depende sobretudo dela e, portanto, se impõem como caminhos e tarefas históricas que esse Estado tem que cumprir. O assinalado no item b é antes de nada herança das fases anteriores (sobretudo a dimensão relativa do mercado interior), de modo que a ação presente do Estado se concentra especialmente nas tarefas assinaladas no item c.

Desde o momento em que o Estado do capital monopolista se consolidou através de uma luta de classes muito dura, esmagando os movimentos populares que buscaram escapar de seu controle, a garantia política está dada e o grande capital tem pouco a temer a curto prazo. A tarefa seguinte consiste em assegurar a existência de uma mão-de-obra barata, e, como na fase precedente as próprias lutas operárias elevaram o nível dos salários a limites que irrita o grande capital, sobretudo num, momento de crise, o Estado se encarrega de rebaixá-los até que acumulem uma real vantagem comparativa. O mecanismo empregado para isto (com mão de ferro, naturalmente) é fato bem conhecido: política econômica liberal, sem controle de preços, para todas as mercadorias salvo uma: a força de trabalho. É sintomático o fato de que nem sequer a magnitude do exército industrial de reserva, que neste período cresceu abundantemente, baste para colocar o preço da força de trabalho nos níveis que apetece o capital monopolista. Esse preço, que se situa por baixo de seu valor histórico, tem então que ser fixado mediante a coação estatal.

Sobre as bases assinaladas o fluxo de capital estrangeiro se dá em diversas magnitudes e, quando flui significantemente, é um fato que acelera o desenvolvimento do capitalismo na área, às custas, é claro, da miséria das massas populares e em geral, da acentuação das desigualdades em todos os níveis da formação social.

A burguesia monopolista nativa sai, então, beneficiada por este processo; mais ainda, é através dele que se realiza e cumpre sua ‘missão’ histórica: extrair a maior quantidade de mais-valia à classe trabalhadora e acelerar a acumulação de capital. Ainda assim, a burguesia latino-americana não é um todo homogêneo: o processo de concentração e centralização de capital que se desencadeia sob a égide do capital monopolista leva à ruina boa parte do setor não-monopolista, mas por um lado este não tem rigorosamente nenhum projeto próprio a oferecer nesta altura da história, e por outro lado com o temor a essas massas, há até pouco tempo efervescentes, o converte na cola política do setor monopolista. Em todo caso, este termina por impor seu predomínio, reduzindo ao mínimo o espaço de expressão dos setores ‘nacionais’. A contradição ainda existe, submetida a uma correlação de forças mais geral.

VIII

Na medida em que o grosso da acumulação de capital passa a gravitar sobre a pauperização absoluta das massas populares locais, se propõe nesta fase um problema de realização para o que o sistema finalmente encontra três saídas:

  1. A ampliação da órbita interna de consumo da burguesia e dos extratos superiores das camadas médias.
  2. A redefinição das pautas de consumo das classes trabalhadoras, que ao passo que pioram notavelmente suas condições de saúde, alimentação, educação básica, etc., incrementam seu consumo de certos bens industrializados como rádios, televisores, etc.
  3. A busca de mercados exteriores. Propondo um desafio aberto a certas teses, os mencionados mercados exteriores não são precisamente os dos países mais atrasados, ou somente o são secundariamente, mas sim dos mercados capitalistas mais avançados, coisa que induz contradições muito particulares no interior do sistema capitalista imperialista em seu conjunto. E é aqui onde reaparece esse aspecto ‘nacional’ do problema, que a transnacionalização parece haver completamente abolido. Cada setor burguês reclama, como é óbvio, o respaldo de seu Estado, ao passo que esse Estado tenta negociar as melhores condições no plano internacional. As contradições inter-burguesas dão então origem a tensões interestatais, nas quais está claro que não chega a desenhar-se uma contradição antagônica, sem que deixem de ter importância. O grau da evolução dessas tensões depende de muitos fatores que vão desde puramente econômicos até às particularidades de índole propriamente política.

IX

A implantação do capitalismo monopolista de Estado na América Latina está carregada de uma enorme ambiguidade a respeito do desenvolvimento do setor econômico estatal.

Em alguns casos, a tendência a seu parcial desmantelamento é muito clara, como no Chile, na Argentina ou no Uruguai. Aqui se produziram processos massivos de ‘privatização’ da economia, como etapa prévia de sua transnacionalização. Na verdade se trata do desmantelamento de todos aqueles níveis que em rigor não haviam se conformado como expressão antecipada do capitalismo de Estado, mas sim como uma manifestação do capitalismo de Estado, de orientação nacional populista como na Argentina, ou como embrião da economia social, como no Chile. Em outros casos, como o do Brasil, o setor da economia estatal se torna robusta e nesse sentido parece haver continuidade entre a fase atual e a anterior. Mas tal continuidade é somente aparente, já que para além dela se produz uma refuncionalização de tal setor em razão das necessidades de desenvolvimento do capital monopolista. De todas as maneiras chega um momento, que é o atual, em que a dimensão do setor estatal aparece como volumoso frente à órbita privada, o que origina toda uma série de pressões desta em favor de um processo de privatização.

  1. Uma redução ainda maior dos salários reais.
  2. Uma desocupação crescente no seio das camadas médias tradicionais, que por regra geral são as mantenedoras dos serviços assistenciais, educativos, etc. Por este lado há também uma série de redistribuição regressiva do salário.

X

O exposto até aqui permite compreender por que o Estado latino-americano possui um desenvolvimento histórico particular, na medida em que a acumulação de contradições da ‘sociedade civil’ determina uma correlativa acumulação de tarefas ‘reguladoras’ para a instância política, que em última instância só pode assegurar a reprodução ampliada do sistema recorrendo a uma dose extremamente grande de autoritarismo.

Na fase atual, a implantação do capitalismo monopolista de Estado tampouco podia levar a cabo de maneira democrática, ainda que somente fosse por fato de que a reorganização social tivesse que operar não uma acentuação das contradições de classe, mas sim sua extrema exasperação. Ademais, está claro de que a transnacionalização dos setores de ponta de nossas economias, e, portanto, de sua modernização, não supõem um processo de homogeneização da sociedade latino-americana toda, mas sim ao contrário, a acentuação de sua heterogeneidade. Por mais que em curso desta etapa se criaram alguns elos relativamente fortes, mesmo que o conjunto siga sendo um elo fraco na corrente imperialista.

Tudo isso cria para a América Latina uma situação muito particular. De uma parte, enerva a aparente consistência dos regimes totalitários, que estão distantes de lograr consolidar um real apoio de massas; superado o momento mais duro da repressão, o movimento popular reaparece com vigor no cenário histórico, ainda que sem dificuldade de adaptação às novas condições de luta e aos mesmos perfis da estrutura de classe que o desenvolvimento capitalista, em muitos pontos impetuoso, forjou. Por outro lado, os setores mais ‘visionários’ da classe dominante tentam ‘adiantar-se’ aos acontecimentos e evitar ‘o pior’, flexibilizando até onde for possível suas estruturas autoritárias de dominação. Mas estas estruturas tem seus limites de elasticidade, em que uma política como a de ‘direitos humanos’ de Carter ou um anseio social-democrata, de transplantar a doce hegemonia burguesa do ‘centro’ para a ‘periferia’, se chocam em geral com a lógica implacável da acumulação de capital nestas áreas, onde o capitalismo não pode desenvolver-se de outra maneira a não ser sobre condições históricas já dadas, impossíveis de modificar-se da noite para o dia, à vontade.

Busca-se, de todas as maneiras, uma fórmula de ‘democracia viável’, que sirva como válvula de escape às contradições acumuladas, ao passo de o movimento popular trata de criar espaços democráticos cada vez mais amplos, através dos quais a luta de classe pode abrir campo. A questão da democracia se põe assim à encruzilhada em que se cruzam muitos caminhos, incluídos aqueles que conduzem ao socialismo. Porque a história, recordemos, segue avançado ao ‘lado mau’, quer dizer, pelos elos mais fracos do sistema. A corrente imperialista não se rompeu e nem se romperá em breve nos Estados Unidos ou na Alemanha, nem sequer na França ou na Itália, onde os avanços ‘teóricos’ parecem ser os substitutos, antes que a expressão de uma transformação revolucionária ad portas, mas sim seguirá rompendo-se em pontos comparáveis ao Vietnam, Camboja, Laos, Angola, Etiópia ou Nicarágua.

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