Carta do cárcere entre camaradas
Piraquara, junho de 1976
Prezo amigo Jorge Haddad
Muita água já passou sob as pontes de nossas vidas, desde a última vez que nos encontramos em Maringá. E eu continuo em dívida para com o amigo. Quero pagar-lhe na moeda internacional da amizade, com sincero e eloquente: muito obrigado.
Obrigado, amigo, por ter guardado meus documentos e demais “materiais”, quando me atendeu profissionalmente na época em que fui preso, usando o nome de Antonio Saraiva de Melo, acusado de desvio e contrabando de café. Primeiro em Maringá, depois em Londrina.
Agradeço-lhe, também, por ter ajudado minha esposa, quando ela esqueceu as jóias sob o colchão do hotel de Maringá.
Muito obrigado, mesmo!
E o caminhão Chevrolet que lhe dei? Foi útil? Estimo.
Como deve ser de seu conhecimento, estou novamente preso, afim de cumprir o resto da pena. Minha situação é tumultuosa, mas não difícil. Felizmente, sempre que consigo uma “escapada”, dou um jeito de atender minha situação processual. Haja visto que, dos 96 anos a que fora condenado inicialmente, e em 27 processos, em 5 estados da União eu consegui reduzir tudo para 5 anos, 11 meses e 9 dias, conforme Execução nº 99999 e acordão do S.R. Federal nº 106.353. Tendo todas as certidões necessárias, falta-me, agora, paciência e cumprir o resto da pena, para sair livre, afim de poder gastar o dinheiro que guardei. Meus familiares são a fonte onde buscarei a energia e coragem necessárias para aturar isso aqui, neste mundo de pesadelo, onde a mentira é a única verdade da vida. Também já é tempo de dependurar as chuteiras. Indiretamente marginalizei até certo ponto a vida de meus filhos queridos; o que não posso fazer, agora, é estender tal sobra sobre a vida de meus netos.
Na última vez que o visitei, em Maringá, você morava nos fundos do armazém de seu pai. Estava comigo o Professor, nosso amigo comum e do seu irmão Salim, e nos dirigíamos ao Uruguai, afim de encontrar-nos com elementos do Partido Comunista Brasileiro. Se tudo corresse bem, iríamos até o Chile, afim de ali assistirmos uma convenção internacional do Partido.
Lembra-se, caro amigo?
Falamos a respeito do Partido Comunista e trocamos ideias sobre a possibilidade de minha filiação ao mesmo.
Hoje, de regresso ao cárcere, para cumprir o que me resta das penas impostas, fico a matutar na burrada que fiz naquela ocasião. E devia ter aderido à pretensões do Professor, pois assim eu teria sido ajudado por todos do Partido, inclusive por você.
Como disse, minha situação é confusa, mas, não, difícil. Preciso obter uma contagem de tempo, em que conste o cômputo do que cumpri realmente preso, entremeados aos períodos de “liberdade” obtidas através das diversas fugas que empreendi.
Também tenho um dinheirinho no Paraguai e outro no Uruguai. Quero trazer tudo isso pra cá.
Preciso, no entanto, da amizade dos amigos, para poder realizar tudo isso. É inegável que todas as despesas serão minhas.
Se possível, de um “alô”, dizendo da possibilidade de tais empreendimentos. Sobretudo, neste momento, quero entrar em contato do Professor, afim de fazê-lo ciente do meu novo estado de espírito.
Sinto que ainda poderei ser útil a muitos.
Contando com sua simpatia, aguardando seu pronunciamento, lembrando-o de nossa amizade anterior. Meus familiares ainda moram em Paranavaí. Para escrever-me, use o endereço abaixo, assim evitaremos a censura da Penitenciária.
Um abraço do (nome ilegível).