A tragédia do campesinato na América Latina, Pedro S. Herrería
Trecho traduzido das Obras Escogidas de Pedro Saad Herrería. Tomo V. Publicadas pela Comisión de Propaganda, Comité Central del Partido Comunista del Ecuador (eds.). EEICA, Guayaquil, 1977; págs. 9–18.
Um clamor geral se levanta na América Latina reclamando pela reforma agrária. Não somente os operários, os camponeses e suas organizações adotam essa posição, mas assim também o faz a burguesia que fala da reforma agrária e afirma que vai realizá-la.
O problema agrário é sem dúvida um dos mais importantes na América Latina. Os países deste continente certamente não se encontram no mesmo nível de desenvolvimento. Em alguns casos, como Brasil e Argentina, o desenvolvimento industrial alcançou níveis superiores ao de outros, como Equador e Bolívia. Mas em todos eles o problema agrário tem importância. Na Argentina, por exemplo, mesmo a população urbana ser maior que a população rural, existem províncias em que 80% da população vive no campo.
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A subsistência é uma característica geral em toda a América Latina e tem fortes traços feudais, que constituem um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento nacional e o progresso social. A exigência da reforma agrária se origina precisamente na necessidade de destruir esses obstáculos para impulsionar para frente a economia e para melhorar a vida do povo.
Diversas formas adotam estes traços. Para não cair em generalizações consideramos preferível examinar esta questão importantíssima no Equador, onde um aspecto fundamental da subsistência de atrasos feudais se manifesta no ‘tenentismo’ da terra. 241 propriedades agrícolas têm no Equador 1.600.000 hectares, ou seja, tanta terra como 329.000 pequenas e médias propriedades, que tem até 50 hectares.
Esta acumulação de terras se agrava a cada dia. Terratenentes nacionais, empresas estrangeiras, especuladores, etc., se apoderam de grandes extensões de terras baldias e de terras dos camponeses (incluindo porções de terras de comunidades indígenas da Serra e da Costa). Entre estes grandes proprietários se encontra a alta hierarquia católica, comunidades religiosas, as organizações por elas financiadas, o Estado, a Assistência Pública (entidade beneficente) que têm entregado suas terras a “arrendatários”, que não são nada além de ferozes terratenentes feudais, algumas Universidades do país, os Bancos (que contribuem com a miséria sistemática dos camponeses mediante o despejo de suas pequenas propriedades e plantações.
Este quadro de acumulação de terra no Equador coincide com o de muitos outros países latino-americanos. No Peru, por exemplo, 73% da terra está nas mãos de cerca de 2.000 pessoas. No Uruguai, 3.605 propriedades maiores de 1.000 hectares cada, equivalem a 4% do número total de propriedades, e ocupam 56% do mapa da República.
A primeira consequência desta acumulação de terras é o que permite os grandes latifundiários impor as mais monstruosas condições de existência e trabalho às massas camponesas.
O exemplo mais claro deste estado de coisas vemos nos indígenas do Equador, Peru e Bolívia.
O índio da serra equatoriana, que foi dono no passado de toda a terra de seu país, que vivei em comunidades das quais algumas ainda subsistem quase em ruínas, depois de destruídas sem misericórdia pelo conquistador espanhol. Milhões de seres humanos desapareceram na conquista. A população autóctone se reduz a menos da metade e foi submetida à escravidão, sem terra.
O terratenente feudal dá ao indígena uma parcela insignificante de terra de má qualidade para que a cultive, sem entregá-lo propriedade. Em troca, o indígena tem que trabalhar quatro dias por semana nas terras do senhor feudal, por uma remuneração de 75 centavos de Sucre por dia, em jornadas esgotantes de dez a doze horas. Para compreender o que significa este salário precisamos dizer que uma libra de batatas vale 70 centavos de Sucre, um ovo vale 120 centavos, um kg de carne vale 9 Sucres. Quer dizer, o salário do indígena corresponde a pouco mais da metade de um ovo por dia ou 60 gramas de carne. Na maior parte dos casos o salário sequer chega nas mãos dos indígenas, porque o patrão com a cumplicidade das autoridades não o paga.
O salário total anual que recebem os indígenas submetidos a este sistema foi calculado e recebeu o nome de “huasipungo”. Esse cálculo deu como salário total ao ano para toda a família de indígenas, incluindo o que produz em sua parte de terra, em 940 Sucres. Tal coisa significa que o indígena tem que viver com toda sua família com uma soma inferior a três Sucres diários, em um país em que o Estado fixa como gasto diário para manter um cavalo do exército a soma de três Sucres.
Mas isto não é tudo. Os indígenas tem que prestar serviços domésticos por um mês ao ano na casa do patrão de forma gratuitas. Ali suas mulheres e filhas são vítimas da grosseria e da luxúria do terratenente de seus familiares. Tem que presentear o patrão com galinhas ou pequenos animais uma vez ao ano, caso contrário seria despejado de sua porção de terra. Os castigos corporais são frequentes e em casos extremos os terratenentes marcaram os indígenas com ferro em brasa como se fossem gado. O menino indígena tem que prestar serviços como pastor de ovelhas do senhor desde seus primeiros anos, dormindo no topo das montanhas sem abrigo, sofrendo as mais espantosas condições.
Essa descrição, que varia de lugar, corresponde à situação dos indígenas do Peru e de outros países latino-americanos em que existem os homens autóctones da América.
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Mas não somente os indígenas padecem sob o jugo feudal. As reminiscências medievais oprimem também outros grupos da população agrícola. O sistema chamado de “parceria”, ou seja, a entrega da terra ao trabalhador agrícola para que a cultive com a obrigação de entregar ao terratenente a metade da colheita, formato que tem grande importância no Peru, Venezuela e em outros países. O arrendamento de terras é uma forma geral na América Latina para a exploração do trabalhador agrário. Estes arrendamentos alcançam níveis muito altos e arrebatam do campesinato todo ou quase todo o lucro que possa obter de seu trabalho.
Se chega no Equador a tal ponto extremo que populações de mais de quinze mil habitantes estão constituídas no coração dos grandes latifúndios feudais. Ali os moradores não são donos nem dos tijolos que construiu sua casa, e que em alguns casos tem suas casas cercadas com arames e alambrados para impedir o tráfico de produtos e o tráfego de pessoas.
O trabalhador agrícola equatoriano não tem proteção da legislação trabalhista, não tem seguro social e nenhuma outra garantia. Não tem direito ao livre comércio: não podem entrar livremente na fazenda os produtos, e o peão tem que compra-los no armazém do senhor, onde este impõe os preços.
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Apesar de tudo isso, no campo latino-americano está em marcha o desenvolvimento capitalista. Mas esse desenvolvimento se faz profundamente entroncado com formas feudais, com a grande propriedade latifundiária. Na medida em que se desenvolvem as explorações capitalistas, se desenvolvem pelo caminho do achatamento das massas campesinas e pela formação de camadas de camponeses ricos. Por isso ainda nos países em que o desenvolvimento capitalista na agricultura foi mais notável como na Argentina, o predominante no campo segue sendo o latifúndio e sua maior sequela: a existência de formas semifeudais de exploração.
A penetração dos monopólios imperialistas na agricultura latino-americana vai adquirindo nos últimos tempos uma ampla escala. Esta penetração tem características muito graves, de vários aspectos. Em primeiro lugar, é a posse direta da terra. São milhões de hectares que estão nas mãos das grandes empresas monopolistas norte-americanas. Ali está a United Fruit, a Astral, a Guayacanes, Plantaciones Ecuatorianas, o Grupo Alemão, etc. A United Fruit é dona de 165.000 hectares em Honduras, ocupando as melhores terras. Não se conhece com exatidão as posses dessa empresa na Costa Rica, mas certamente não é inferior a 100.000 hectares. Na Guatemala, a United Fruit foi expropriada no período de revolução em uma extensão de 84.000 hectares, o que não era o total de suas posses. Em Cuba, a mesma empresa yankee era dona de centenas de milhares de hectares. Nos últimos anos, aproveitando a situação de crise na Argentina, grandes consórcios capitalistas estadunidenses compraram enormes extensões de terra a valores irrisórios nas províncias de Mendoza, Santa Fé e Buenos Aires. Tudo isso determina a expulsão de dezenas de milhares de famílias camponesas dos campos em que trabalham.
Controlando o mercado exportador de nossos países, as moedas e as transações internacionais através do FMI, os monopólios norte-americanos conseguem nos converter em países de monocultura cuja economia depende exclusivamente de um ou dois produtos.
A exportação de bananas do Equador, nas mãos da United Fruit, representa mais de 60% do lucro estrangeiro. O Brasil continua sendo um país em que o café ocupa uma porcentagem elevadíssima da exportação, controlado pelos monopólios yankees que ditam o preço. A América Central depende da banana que é a principal produção na Costa Rica e em Honduras. Em uma palavra, nossa economia agrícola está deformada pela penetração imperialista.
Este domínio dos monopólios sobre o mercado exportador latino-americano lhes permite jogar com os preços de nossos produtos e impor sanções a nós. No mercado norte-americano se produziu sistematicamente uma baixa de preço dos bens de exportação latino-americanos, em sua maior parte agrícolas, e uma alta dos preços dos manufaturados que nós compramos dos Estados Unidos. Se calculou que por esta baixa nos preços, a Argentina perdeu nos últimos cinco anos certa de ‘dois mil milhões’ de dólares. O Banco Central do Equador afirma que o que o país perdeu por esta razão é uma quantidade maior do que a que recebeu como empréstimos.
Os monopólios yankees gostam de falar de “ajuda” à agricultura latino-americana. Mas essa “ajuda” se dá somente limitada aos produtos que interessam aos monopólios norte-americanos e se dá para desenvolver aquelas linhas em que se encontram favorecidos os exploradores yankees. Jamais se dá “ajuda” à produção de matéria-prima para a indústria nacional, como o algodão ou sementes, etc.
A “ajuda” yankee tem uma agência organizada: o Serviço Cooperativo Interamericano de Agricultura. Este serviço, como todos seus semelhantes de educação, salubridade, etc., não é outra coisa além de uma agência de propaganda da política yankee e um instrumento que contribui para desorientar a produção nacional, traçando planos distantes das necessidades do respectivo país.
O mesmo ocorre com a chamada “Aliança para o Progresso”. Os autores deste programa falam de maneira vaga de uma reforma agrária que mediante a “comercialização” de produtos da terra “constitua uma base de estabilidade econômica” para o homem. Mas não assinala o que significa o latifundismo e o semifeudalismo para a América Latina.
Finalmente, para ver claramente o que significa a “ajuda” norte-americana nos basta lembrar da famosa negociação dos excedentes agrícolas. Essa negociação tende a obrigar nossos países, sob a mentira de que está sendo ajudado, a adquirir excedentes da produção agrícola norte-americana, ainda que seja igual à que produzimos nós mesmos em nosso solo. Vendeu-se muito milho ao Equador sob essa forma, mesmo a produção nacional sendo suficiente para o consumo. Isso significou a ruína para os semeadores de milho no Equador.
As subsistências feudais na agricultura, a dominação imperialista no campo latino-americano mantém níveis técnicos sumariamente atrasados na produção. O emprego do maquinário agrícola é muito limitado em vários países latinos, e em alguns deles o trator é praticamente desconhecido. A razão é simples: é mais barato para o terratenente feudal empregar a mão de obra indígena ou servil do que utilizar maquinário. Com essas relações semifeudais no campo, com a miséria espantosa que impera, o desenvolvimento industrial se vê detido: não existe um amplo mercado interno capaz de servir de base a uma grande indústria.
Os baixos níveis técnicos de produtividade encarecem o custo dos produtos e em consequência, encarece a vida de toda a massa.
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A vida política dos nossos países se vê determinada pelo predomínio dos grupos latifundiários, aliados ao imperialismo, que estabelecem regimes antidemocráticos e em muitos casos terroristas, para manter sua dominação e impedir a ascensão do povo. Por isso todo movimento de libertação nacional latino-americano colocou como um de seus objetivos fundamentais a destruição do domínio feudal no campo e assinalou a necessidade de realizar uma profunda reforma agrária radical. A luta contra o imperialismo e seu domínio na América Latina não pode separar-se da luta contra as subsistências feudais e pela reforma agrária.
A Conferência Latino-Americana pela Soberania Nacional, a Emancipação Econômica e a Paz, reunida no México em março de 1961, proclamou a necessidade de implantar “uma reforma agrária integral que destrua todas as formas latifundiárias de produção agrícola e implantar sistemas que tenham a terra em posse efetiva de quem a trabalha, evitando todas as formas de concentração da propriedade agrária”.
Esta é a origem da luta pela reforma agrária que surge como um imperativo na ação para alcançar o progresso social, a libertação nacional e a democracia de nosso continente. Uma autêntica reforma agrária tem que destruir o latifúndio, entregar diretamente a terra aos camponeses, destruir todos os sistemas semifeudais como a ‘mita’ e a ‘parceria’, os arrendamentos, etc.; dar ao trabalhador do campo a ajuda técnica, os créditos, as ferramentas, as sementes, as fazendas e a instrução necessária.
A realização destes postulados básicos propõe quais são as forças que devem impulsionar e encabeçar a transformação revolucionária do campo latino-americano.
Poderá a burguesia nacional ‘acaudilhar’ um movimento autêntico de reforma agrária? Tal coisa não pode acontecer. A burguesia, que tem interesse em destruir o regime feudal para ampliar sua base de domínio e ação, não pode, por seus próprios interesses, propor-se a ajudar a libertação definitiva da massa campesina. O que a burguesia pretende é substituir o latifúndio feudal pela fazenda capitalista, o que significa que não desaparece o sistema de exploração, mas sim que modifica seu formado.
Na América Latina o exemplo de Venezuela nos confirma isso. O governo de Betancourt tranquilamente declara que se necessitará de um período de não menos que 25 anos para realizar a reforma agrária. O que se oculta através desta chamada “reforma agrária” da burguesia é a negociação de venda dos latifúndios privados ao Estado com a qual os terratenentes fazem grandes negócios e o país se endivida.
Para que a reforma agrária alcance seu objetivo, necessariamente tem que ser dirigida e aplicada por forças de classe que tenham autêntico interesse na destruição do domínio feudal e imperialista. Estas duas forças não são outras que não a do campesinato e da classe operária. Só uma forte aliança operário-camponesa, com um núcleo grande à frente da libertação nacional, que inclua os setores das camadas médias radicalizadas e que marche em unidade de ação, em lutas concretas com os setores da burguesia anti-imperialista e antifeudal, pode levar até o fim a reforma agrária.
Os exemplos históricos aqui são conhecidos. É o caso dos países socialistas de Europa e Ásia. E no nosso continente o caso glorioso da Revolução Cubana, que não só destruir a raiz do feudalismo no campo cubano, mas que levou a transformação adiante em direção à criação de uma agricultura socialista. Os resultados são visíveis: Cuba empreendeu uma acelerada marcha mostrando a toda a América Latina qual era a solução do problema agrário. Esta é uma das causas porque os imperialistas yankees tem ódio da Revolução Cubana e porque conseguem até certo ponto mobilizar contra ela os médios governantes de vários países latino-americanos.
Os camponeses do Brasil que tomam terras, os explorados do campo chileno que combatem e formam sua Federação Camponesa, os indígenas do Peru e Equador que insurgem contra a exploração, os camponeses colombianos que lutam até com armas em punhos contra o terror e a opressão, os camponeses venezuelanos mobilizados em todo o país, os explorados da United Fruit na América Central, que se levantam em grandes mobilizações contra o monopólio: todos estes testemunham a decisão de combate pela terra.
Sim, a reforma agrária é um imperativo inadiável.
Guayaquil, 14 de noviembre de 1962.
Pedro Saad.