A questão do fascismo na América Latina, Ruy Mauro Marini

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22 min readDec 25, 2020

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Ruy Mauro Marini (1932–1997)

Trecho traduzido do original ‘La cuestión del fascismo en América Latina’, a partir das intervenções no seminário “Las fuentes externas del fascismo: el fascismo latinoamericano y los intereses del imperialismo”, por Ruy Mauro Marini, Theotonio dos Santos, Pío García e Agustín Cueva, em 1978.

Partirei da constatação de que atravessamos na América Latina um período contrarrevolucionário para que, uma vez caracterizado este período, indagar em que medida ele afeta o Estado. Assim, sendo o Estado como é, a força concentrada da sociedade, a síntese das estruturas e relações de dominação que ali existem, a vigência de um processo contrarrevolucionário incide diretamente sobre ele, afetando-o em sua estrutura e funcionamento. É a tomada de consciência dessa situação que tem levado os intelectuais e as forças políticas do continente a proporem-se à análise da contrarrevolução, gerando a discussão sobre o caráter fascista ou não fascista desse processo.

Agora, me parece válido, de certo ponto de vista, recorrer ao termo “fascismo” como um ponto de referência. Na medida em que o fascismo europeu representou também um período contrarrevolucionário, proporcionou também um ponto de comparação para analisar a situação latino-americana. Entretanto, creio que — mais do que buscar as semelhanças e diferenças entre o processo contrarrevolucionário latino-americano e o fascismo europeu — é preferível partir da premissa de que ambos constituem formas particulares da contrarrevolução burguesa e tratar, então, de verificar em que consiste a especificidade que assume a contrarrevolução latino-americana, em especial do ponto de vista do Estado. Assim estaremos seguindo os ensinamentos dos marxistas europeus que utilizaram, para a análise do fascismo, o ponto de referência que então tinham a respeito da contrarrevolução burguesa: o bonapartismo, sem assumir como premissa de que se tratavam de fenômenos idênticos; mas bem se preocuparam em estabelecer a especificidade do processo fascista e das formas de dominação e do Estado a qual este dava lugar. Se não tivessem feito dessa forma, se tivessem confundido as formas particulares com o processo geral que as produz, não contaríamos hoje com os estudos sobre o fascismo que tem enriquecido a teoria política marxista e nos permitem abordar com mais segurança a análise da contrarrevolução latino-americana.

Vejamos então que fatores haveriam provocado a abertura desse processo contrarrevolucionário na América Latina, examinemos a influência deste na estrutura e no funcionamento do Estado, para nos propormos então à pergunta de que se as mudanças pelas quais ele tem passado representam ou não um fenômeno transitório, no sentido que Pío García [1] deu ao problema, e como isso afeta a estratégia revolucionária.

Ao meu modo de ver, as ditaduras militares latino-americanas são frutos de um processo que tem três vertentes. Como veremos mais à frente, esse processo não gerou somente ditaduras militares, mas também afetou Estados que não assumiram esta forma. Nesse sentido, o primeiro efeito da ação desses fatores não é tanto o golpe brasileiro de 1964, como se defende, mas sim as modificações que apresenta o Estado venezuelano a partir de 1959, sob o governo de Betancourt [2].

A primeira vertente da contrarrevolução latino-americana é a mudança de estratégia global norte-americana, que começa a intervir nos fins dos anos cinquenta e nos princípios dos anos sessenta, e que é implementada definitivamente no governo Kennedy. Sua principal motivação é o fato de que os Estados Unidos, que indiscutivelmente encabeça o campo capitalista, se vê enfrentando uma série de processos revolucionários em distintas partes do mundo, como em Argélia, Congo, Cuba e Vietnam, que conseguem resultados diferentes e que fazem tremer a estrutura mundial de dominação imperialista. Isso acompanha a modificação na balança de poder entre Estados Unidos e a União Soviética que implica um maior equilíbrio entre ambos. Tudo isso conduz uma mudança de proposição estratégica norte-americano que passa da contemplação de uma resposta massiva global a um enfrentamento direto com a URSS, longe de uma resposta flexível, capaz de enfrentar os movimentos revolucionários (estes, na perspectiva dos Estados Unidos, sempre movimentos soviéticos) aonde quer que eles se apresentassem.

A nova estratégia americana tem várias consequências. Entre elas, modificações no plano militar, por exemplo, com ênfase os meios de transporte massivo e nas forças convencionais; a criação de grupos especiais treinados em contraguerrilha, como os Boinas Verdes; o reforço do seus exércitos nacionais, o que McNamara [3] chamou em seu livro “A essência da segurança” de “indígenas de uniforme”, sob programas de capacitação e armamento. Mas o mais significativo para o que nos interessa aqui, é a formulação de uma doutrina de contra-insurgência que estabelece uma linha de enfrentamento aos movimentos revolucionários a ser praticada em três planos: aniquilamento, conquista de bases sociais e institucionalização.

Seria conveniente destacar três aspectos das doutrinas de contra-insurgência. Em primeiro lugar, sua concepção igual à da política: a contra-insurgência é a aplicação à luta política de um enfoque militar. Normalmente, na sociedade burguesa, a luta política tem como propósito derrotar o seu adversário, mas este segue existindo como elemento derrotado e pode inclusive atuar como força de oposição. A contra-insurgência, numa perspectiva similar à do fascismo, não vê o adversário como um inimigo que deve ser derrotado mas sim aniquilado e destruído, o que implica a ver a luta de classes como guerra e leva, então, à uma adoção de táticas e métodos militares de luta.

Em segundo lugar, a contra-insurgência considera o movimento revolucionário como algo alheio à sociedade em que este se desenvolve; em consequência, vê o processo revolucionário como subversão provocada por uma infiltração do inimigo. O movimento revolucionário é, então, algo parecido com um vírus, um agente infiltrado de fora que provoca no organismo social um tumor, um câncer, que deve ser extirpado e eliminado, suprimido, aniquilado. Aqui também se vê a aproximação da doutrina fascista.

Em terceiro lugar, a contra-insurgência, ao pretender reestabelecer a saúde do organismo social infectado, da sociedade burguesa sob sua organização política e parlamentária e liberal, se propõe exatamente ao reestabelecimento da democracia burguesa, além do período de exceção que representa o período de guerra. Diferentemente do fascismo, a contra-insurgência não coloca em questão a validade da democracia burguesa, mas somente propõe sua limitação ou suspensão durante a campanha de aniquilamento. Mediante a reconquista das bases sociais, se deve então marchar à fase de institucionalização, que é vista como o reestabelecimento pleno da democracia burguesa.

A segunda vertente da contrarrevolução latino-americana é a transformação estrutural das burguesias crioulas, que tende a traduzir-se em modificações do bloco político dominante. A base objetiva desse fenômeno é a integração imperialista dos sistemas de produção que existem na América Latina, ou mais exatamente a integração dos sistemas de produção latino-americanos ao sistema imperialista, mediante as intervenções diretas do capital estrangeiro, a subordinação tecnológica e a penetração financeira. Isso leva a, em meados dos anos cinquenta, surja e se desenvolva uma burguesia monopolista, estreitamente vinculada à burguesia imperialista, em especial à norte-americana.

A integração imperialista corresponde, junto à superexploração do trabalho, ao acentuamento da centralização do capital e da proletarização da pequena burguesia. Por isto, torna mais aguda a luta de classes e começa a romper o esquema de alianças adotado até então pela burguesia, tanto a causa das contradições existentes entre suas frações monopólicas e não-monopólicas, quanto a consequência da luta que se trava entre a burguesia em seu conjunto e a pequena burguesia, a qual acaba por buscar alianças com o proletariado e o campesinato.

O resultado desse processo é a ruptura, o abandono do que havia sido, até então, a norma na América Latina: o Estado populista, ou seja, o “Estado de toda a burguesia”, que favorecia a acumulação de todas as suas parcelas (ainda que estas tenham aproveitado desigualmente dos benefícios postos ao seu alcance). Em seu lugar, se cria um novo Estado, que se preocupa fundamentalmente com os interesses das parcelas monopolistas, nacionais e estrangeiras, e estabelece então, mecanismos seletivos para favorecer sua acumulação; as demais parcelas burguesas devem subordinar-se à burguesia monopolista, ficando o seu desenvolvimento em estreita dependência do dinamismo ordenado pelo capital monopolista, enquanto a pequena burguesia, ainda sem deixar de ser privilegiada na aliança de classes em que repousa o novo poder burguês, é forçada a aceitar uma redefinição de sua posição e perde importância política e fica, ela também, totalmente subordinada, com suas condições de vida vinculadas às iniciativas e ao dinamismo da burguesia monopolista.

A terceira vertente da contrarrevolução latino-americana é a ascensão do movimento de massas que deve enfrentar a burguesia, em meados dos anos sessenta. Esse movimento vinha se desenvolvendo desde a década anterior: a revolução boliviana de 52, a guatemalteca de entre 44–54, mesmo a radicalização dos movimentos populares [4] em distintos países que teria seu primeiro ponto culminante na revolução cubana. Esta influencia particularmente nas camadas intelectuais pequeno-burguesas, que atravessam, como vimos, um período de reajuste em suas relações com a burguesia, acentuando seu deslocamento para o campo popular. Ali ganha importância crescente o movimento campesino, ao passo que se desenvolve um novo movimento operário, produto do novo proletariado criado pela industrialização das décadas precedentes. É, definitivamente, essa ampliação do movimento de massas, que irrompe das brechas do sistema de dominação criadas pela fratura do bloco no poder e que incide no sentido de agravar as contradições ali existentes, o que explica a violenta reação da burguesia e do imperialismo, ou seja, da contrarrevolução que se desencadeia então no continente.

Examinemos brevemente como se realiza e onde se conduz essa contrarrevolução e veremos que ela não pode identificar-se mecanicamente com o fascismo europeu, ainda que seja como uma forma específica de contrarrevolução burguesa e recorta desta sua característica geral: recurso da parcela vitoriosa ao terrorismo para dobrar seus oponentes, desde as parcelas rivais, e muito especialmente a classe operária. A grosso modo, a contrarrevolução latino-americana se inicia com um período de desestabilização durante o qual as forças reacionárias tratam de agrupar em torno de si um conjunto da burguesia e disseminar no movimento popular a divisão, a desconfiança em suas forças e em seus dirigentes; continua com um golpe de Estado, levado a cabo pelas Forças Armadas, e se conclui com a instauração de uma ditadura militar. As sociedades concretas latino-americanas agregam a cada um desses momentos a sua marca singular.

Na fase de preparação do golpe, o de desestabilização, se observam traços fascistas, mas são secundários. Através da propaganda, da intimidação verbal e até física, que pode implicar a utilização de grupos armados, a burguesia contrarrevolucionária busca desmoralizar o movimento popular e ganhar força, somando aliados e neutralizando setores. Contudo, por tratarem-se de sociedades baseadas na superexploração do trabalho, em nenhum caso ela tem condições para reunir forças suficientes para derrotar politicamente o movimento popular, não chega sequer à estruturação de um partido político; é interessante observar que ali onde se utilizaram com maior abundância os métodos fascistas de luta, ou seja, em Argentina, setores significativos da esquerda negam que se tenha produzido uma contrarrevolução fascista. Como quer que seja, as forças contrarrevolucionárias não chegaram jamais a um claro triunfo político, porque precisam usar da força para fazer-se Estado e emprega-lo ao seu benefício; o terrorismo de Estado, como método de enfrentamento com o movimento popular, se intensifica precisamente porque este movimento se encontra intacto e muitas vezes aparentemente forte, no momento em que as parcelas contrarrevolucionárias falam em subordinar plenamente o aparato estatal não havendo sofrido um processo prévio de derrotas em que o fascismo pode chegar a expressar-se como em Alemanha, no plano eleitoral.

Essa característica da contrarrevolução latino-americana se deriva da impossibilidade em que se encontra a burguesia monopolista de atrair ao seu campo setores significativos do movimento popular. A diferença do fascismo europeu, que foi capaz de engajar amplas massas pequeno-burguesas e de agregar inclusive o proletariado, ganhando ali um certo apoio entre trabalhadores desempregados e até operários em atividade, a burguesia monopolista da América Latina não pôde pretender reunir verdadeira força de massas que a permita enfrentar politicamente, nas urnas e nas ruas, ao movimento popular. Por isso, se dá como meta o reestabelecimento das condições de funcionamento do aparato estatal, mesmo se atemporalmente, para poder acioná-lo em seu proveito. Isso implica em reunificar a unidade burguesa, refazendo o bloco de poder tal como se encontrava antes de sua ruptura e reestabelecer, ainda que limitadamente, — ou seja, em débito — suas relações de aliança com a pequena burguesia. Sobre esta base, o Estado pode se ocupar de resolver a luta de classes mediante a intervenção aberta do último instrumento de defesa do poder burguês: as Forças Armadas. São estes, então, os verdadeiros objetivos da política de desestabilização praticada pela burguesia e não, como no fascismo, a conquista de uma força política própria superior à força do movimento revolucionário. E é por isso que encontramos na contrarrevolução latino-americana outro traço distante do movimento fascista: o discurso ideológico de defesa da democracia burguesa, ou seja, do Estado burguês, ao invés de sua negação, tal como propuseram os movimentos fascistas.

São estas condições específicas que fazem com que a contrarrevolução possa se expressar, no plano ideológico e também estratégico, na doutrina da contra-insurgência. Ao privilegiar as Forças Armadas como elemento central da sua estratégia, a burguesia monopolista está conferindo a este aparato especial do Estado a missão de solucionar o problema; está, então, passando do terreno da política para o da guerra. Na medida em que se encontra com Forças Armadas já preparadas ideologicamente, pela doutrina da contra-insurgência, para o cumprimento destas tarefas e para aplicar à luta política um enfoque militar, se sana de uma vez a vontade contrarrevolucionária da burguesia e a sede de poder das Forças Armadas. Estas vão, assim, mais longe do que um golpe de Estado e procedem à implantação de um regime militar; se do ponto de vista da doutrina burguesa clássica, as Forças Armadas são o corpo do Estado, agora se convertem em sua cabeça.

Mas a dualidade original, expressada pela burguesia monopolista e pelas Forças Armadas, ainda que encontre uma resolução imediata num processo de golpe de Estado, se reproduz a um nível superior uma vez instaurado o Estado de contra-insurgência. A forma de ditadura militar que este assume indica tão somente que as Forças Armadas assumiram o controle e exercem como o poder político como instituição. Ela não nos revela a essência deste Estado, do ponto de vista de sua estruturação e funcionamento, nem põe em evidência o fato de que as Forças Armadas dividem ali o poder com a burguesia monopolista. Para compreender isso, é necessário ir mais longe da mera expressão formal de Estado, sendo que sempre que estivermos diante de certas estruturas, funcionamentos, e coparticipação entre Forças Armadas e capital monopolista, estaremos diante de um Estado de contra-insurgência, tenha este ou não a forma de uma ditadura militar.

O Estado de contra-insurgência, produto da contrarrevolução latino-americana, apresenta uma hipertrofia do poder executivo através de seus vários órgãos, em detrimento dos demais poderes; não se trata, contudo, de um traço que o caracterize em relação ao moderno Estado capitalista. Mas esta distinção deve buscar-se na existência de dois ramais centrais de decisão do poder executivo. De um lado, o eixo militar, constituída pelo Estado Maior das Forças Armadas, que representa a instituição militar ao nível de tomada de decisões e que repousa sobre uma estrutura vertical própria das Forças Armadas; o Conselho de Segurança Nacional, órgão deliberativo supremo, em que se entrelaçam os representantes do eixo das Forças Armadas com os delegados diretos do capital; e os órgãos do serviço de inteligência, que informam, orientam e preparam o processo de tomada de decisões. De outro lado, o eixo econômico, assim como empresas estatais de crédito, produção e serviços, cujos postos-chave se encontram ocupados por tecnocratas civis e militares. Assim, o Conselho de Segurança Nacional é o âmbito onde confluem ambos os eixos, entrelaçando-se, e constitui o órgão chave do Estado de contra-insurgência.

É esta a estrutura real o Estado de contra-insurgência, que consagra a aliança entre Forças Armadas e o capital monopolista, e onde se desenvolve o processo de tomada de decisões fora da influência das demais instituições que compõem o Estado burguês, como são os poderes legislativo e judiciário. Estes podem perfeitamente coexistirem junto com uma ditadura militar, como ocorre no Brasil, ou configurar-se inclusive como um regime civil, como em Venezuela, sem que afete a estrutura e o funcionamento real do Estado de contra-insurgência. Lembremos, nesse sentido, como Venezuela — onde houve o primeiro ensaio de contra-insurgência na América Latina, no início dos anos setenta — evoluiu no sentido de criar seu Conselho de Segurança Nacional e ter chegado inclusive a um Sistema Nacional de Empresas Públicas, que levou o capitalismo de Estado venezuelano a ficar fora do controle do congresso e das demais instituições estatais.

Em síntese, o Estado de contra-insurgência é o Estado corporativo da burguesia monopolista e das Forças Armadas, independente da forma que assuma esse Estado, ou seja, independente do regime político vigente. Tal Estado apresenta similaridades formais com o Estado fascista, assim como com outros tipos de Estados capitalistas, mas a sua especificidade está em sua peculiar essência corporativa e na estrutura e funcionamento que ali se geram. Chamá-lo fascista não nos faz avançar um passo na compreensão de seu significado.

Esta análise não deve levar a mal-entendidos. Os tecnocratas civis e militares que se ocupam da gestão do Estado, não são mais do que a representação política do capital, e são tal que não cabe especular sobre sua autonomia, além do que se pode fazer com qualquer representação política sobre a classe que representa; em outras palavras, é profundamente errôneo qualificar a essa tecnocracia burguesa como estatal, no mesmo plano que a classe burguesia propriamente dita. Do mesmo modo, a fusão dos interesses corporativos das Forças Armadas e da burguesia monopolista não devem ocultar o fato de que esta última representa uma fração propriamente capitalista da burguesia, enquanto que as Forças Armadas (ou, para ser mais preciso, a oficialidade) não é senão um corpo de funcionários cuja vontade política e econômica é rigorosamente a da classe à qual serve. Finalmente, é necessário ter em mente que, ainda que o Estado de contra-insurgência seja o Estado do capital monopolista, cujas frações hoje constituem o bloco de poder, não exclui a participação das demais frações burguesas, assim como em sua reprodução econômica o capital monopolista cria constantemente para os demais setores capitalistas condições de reprodução (e também de destruição), por isso é incorreto supor que as camadas burguesas não-monopolistas podem estar interessadas na supressão de um Estado que constitui a síntese das relações de exploração e dominação em que elas baseiam sua existência; não reside em outra causa o fracasso das frentes antifascistas que tenham tentado pôr-se em marcha na América Latina e que se chocaram sempre com o rechaço da burguesia não-monopolista, independente do atrito que esta mantém com o bloco no poder.

Tenho tentado estabelecer, até aqui, as causas e a natureza da contrarrevolução latino-americana, assim como o caráter do Estado que a deu lugar. Me preocuparei agora da situação atual que atravessa a contrarrevolução, correspondente a uma fase de institucionalização e, a certo ponto, democratização limitada, que corresponde ao que os teóricos norte-americanos do Departamento de Estado têm chamado de “democracia viável” e, ainda mais precisamente, “democracia governável”. É indubitável que esta fase acarreta em modificações do Estado contrarrevolucionário, que entenderemos melhor se analisarmos os fatores que determinam essa situação. Seguirei, nesta análise, os mesmos passos dados para o exame da origem e da cristalização do processo contrarrevolucionário na América Latina.

Se partirmos do primeiro fator considerado: o imperialismo norte-americano, constataremos imediatamente que sua situação é distinta da que tinha nos anos sessenta. Desde o auge econômico daquele período, tem sobrevivido a uma crise econômica sem perspectiva de solução à vista. Nesse marco, a hegemonia norte-americana no campo capitalista já não só não é incontrastável, como vê enfrentadas as pretensões que, nos campos político e econômico, levantam as demais potências imperialistas, em particular Alemanha Federal [5] e Japão. A crise refletiu, inclusive, no interior da própria sociedade norte-americana, provocando uma crise ideológica e política que, mediante fatos como Watergate, o hippismo e outros, tem afetado a legitimidade do sistema de dominação.

Em outro plano, junto a um reforçamento constante da União Soviética, que manteve um equilíbrio militar com os Estados Unidos, verificou-se um notável avanço das forças revolucionárias em diferentes partes do mundo. O ponto crítico da crise econômica, em meados desta década, coincidiu com grandes vitórias do movimento revolucionário em África, particularmente Moçambique e Angola, e na Ásia, com a derrota espetacular dos Estados Unidos em Vietnã, ao mesmo tempo que, na mesma Europa, as forças populares alcançaram significativos avanços em Portugal, Espanha, Itália e Grécia, e inclusive em bastiões imperialistas como a França.

Neste contexto, o imperialismo norte-americano teve de fazer adequações em sua estratégia, que se expressou na política de Carter [6]. Ele assumiu o governo com o propósito explícito de restaurar a legitimidade do sistema de dominação dentro da sociedade norte-americana, lançando mão de velhos mitos que são caros à ideologia burguesa do país, como o dos direitos humanos, e de medidas que tratam de tornar menos pesada a crise para os distintos grupos sociais do país. Igualmente, se deu como tarefa superar a crise econômica, reafirmando a hegemonia norte-americana no campo capitalista; ainda que admita que essa hegemonia deve ser dividida, na linha proposta pela Comissão Trilateral, os Estados Unidos pretende se manter como eixo-central de forças a serem estabelecidas entre as potências imperialistas.

Finalmente, o imperialismo norte-americano se propõe a modificar sua estratégia mundial, para compensar e evitar a repetição dos fracassos obtidos na primeira metade da década, modificação que segue duas linhas principais. A primeira é a polarização das relações com o campo socialista, centralizando-as na Europa; a segunda, a desconfiguração ou o esfriamento das zonas periféricas “quentes”. Por isso, Carter sustentou que a Europa é a espada do ocidente se esforçou para tornar tensas as relações entre a OTAN e o Pacto de Varsóvia; ainda que pudesse eventualmente levar à guerra, a política belicista do imperialismo norte-americano em relação à União Soviética busca na realidade um novo equilíbrio, baseado no que o presidente Ford chamou de “paz com força”, política na qual privilegia a Europa, considerando que o avanço da revolução mundial em outras áreas ia piorando a correlação de forças a seu favor. Em consequência, propõe uma política de esfriamento das zonas periféricas, adotando medidas que tratam de dar solução a problemas muito agudos, como os que vinham tomando forma no Oriente Médio, no Panamá, etc, com a revisão da contra-insurgência, que pretende limar seus aspectos mais ásperos e adequá-la às novas condições da luta de classes.

Isso se deve ao fato de que a contra-insurgência, apesar da capacidade que tem demonstrado para deter o movimento revolucionário em muitas áreas, tem experimentado revezes fortes, em particular no Vietnã, e se revelou incapaz, inclusive ali onde foi efetiva para combater o movimento revolucionário, de assegurar as condições de uma dominação política estável, como é o caso de América Latina; se deve também a que as potências imperialistas europeias, a medida em que devem assumir mais responsabilidades mundiais com o marco da hegemonia dividida, se vem forçadas a considerarem a força do movimento operário em seus países, que se opõe à violência crua e aberta que a contra-insurgência aplicou; a utilização de métodos contrarrevolucionários mais sutis, encabeçados sobretudo pela Alemanha Federal, tem dado resultados positivos nos países da Europa Mediterrânea. Assinalemos que a proposta política estritamente nacional que fazem atualmente os partidos europeus chamados de eurocomunistas diminui a capacidade do movimento operário destes países para pesar na correlação de forças mundial e inclinar a balança a favor do campo da revolução, como ficou evidenciado com a recente ofensiva reacionária que o governo francês pode desenvolver em África, sobre base da derrota eleitoral da esquerda na França.

Como quer que seja, o ponto principal da doutrina de contra-insurgência, que se encontra agora submetido a revisão, é o que se refere à origem dos movimentos revolucionários.

Abandonando a noção simplista da infiltração externa, os novos teóricos do imperialismo norte-americano, saídos de uma Comissão Trilateral, como Huntington, veem o problema como resultado de descompensações, de desequilíbrios que afetam o Estado na moderna sociedade capitalista, como resultado das pressões das massas em seus esforços por melhores condições de vida. Isto que vale não só para os países dependentes, mas também para os países de capitalismo avançado, os leva a propor o problema da “governabilidade da democracia”, que aponta necessariamente à limitação, à restrição do próprio jogo político democrático, para mantê-lo sob controle.

Para a América Latina, a reformulação da estratégia norte-americana se traduziu na busca de uma nova política, ainda não plenamente definida, que, além da eliminação dos pontos de atrito, como o que se refere ao Canal do Panamá, aponta a uma institucionalização política, capaz de expressar-se em uma “democracia viável”, ou seja, restringida. Mas isso não resulta somente das propostas estratégicas dos Estados Unidos, mas deriva também, e principalmente, das novas condições da luta de classes que governam na América Latina.

Papel importante é desempenhado, nesse sentido, a diversificação do bloco do poder, pelas mudanças feitas no seio da burguesia monopolista. Nos países onde esse fenômeno se encontra mais avançado, como o Brasil, podemos ver como as contradições internas da burguesia industrial e agrária, ou de camadas inferiores da burguesia sobre seu setor monopolista, mas também nascem divisões surgidas no seio do grande capital, da própria burguesia monopolista.

Assim, é possível constatar como, no Brasil, — desde que, em 1974, entrou em crise o padrão de reprodução econômica baseado na indústria de bens de consumo — as lutas internas da burguesia se dão entre as frações nacionais e estrangeiras (norte-americanas, fundamentalmente) ligadas à dita indústria, e as frações nacionais e estrangeiras, (essencialmente, eurojaponesas) que tem assentos na indústria básica e de bens de capital. Se trata, hoje, de decidir os rumos da economia do país, do padrão de reprodução que estes devem seguir e isto, que implica na reassociação de recursos, brechas fiscais, créditos de todo o tipo, estimula a rivalidade entre esses dos setores do grande capital, a qual polariza aos demais grupos capitalistas que se encontram vinculados a um ou a outro setor. Convém ter em mente que já não é possível, nestas circunstâncias, mascarar as lutas internas da burguesia após justificativas de corte nacionalista nem tampouco pretendem canaliza-las para fórmulas do tipo frente antifascista, já que elas dividem por igual os setores burgueses nacionais e estrangeiros que operam no país e enfrentam a frações do grande capital.

De todo modo, as contradições internas da burguesia, ao acenturarem-se, exigem espaço político para poderem dirimir-se. A centralização rigida do poder político, nas mãos da elite tecnocrata-militar, deve flexibilizar-se, devolver certa vigência ao parlamento como âmbito de discussão, permitir o acionar dos partidos e da imprensa, para que as distintas frações burguesas possam desenvolver sua luta. Isso já não entra em choque com a exigência de que o Estado siga segurando capacidade o suficiente para manter dormentes os movimentos de massa, uma vez que quanto mais ausentes estejam eles do cenário político, maior liberdade de ação têm as frações burguesas para levarem a cabo seus enfrentamentos e negociações. É a razão pela qual o projeto burguês de institucionalização não se distancia da fórmula de “democracia viável” ou “governável” ou restringida, que propõem os teóricos imperialistas norte-americanos. Do mesmo modo, ao desatar-se a contrarrevolução, o projeto do grande capital convergia para o centralismo autoritário, em direção às formas ditatoriais propostas por esses mesmos teóricos.

Agora se trata, pois, de levar a cabo uma “abertura” política que preserve o essencial do Estado de contra-insurgência. Em quê consiste isso? Na institucionalização da participação do grande capital na gestão econômica e na subordinação dos poderes dp Estado às Forças Armadas, através dos órgãos estatais criados, em especial o Conselho de Segurança Nacional. O primeiro ponto não se encontra em discussão, à priori, para a burguesia; em suma, dá lugar a enfrentamentos entre suas parcelas por assegurar uma fatia maior na divisão da pilhagem que representa o eixo econômico do Estado de contra-insurgência. O segundo é, hoje, objeto de discussão: em muitos países se fala de um Conselho de Estado, como órgão controlador dos demais aparatos do Estado, no qual teriam peso importante as Forças Armadas; no Brasil, inclusive tenta-se ressuscitar a velha fórmula do Estado Monárquico, que consagrava, além dos três poderes clássicos do Estado, o poder moderador exercido pelo imperador, e que os ideólogos da burguesia hoje atribuem às Forças Armadas.

Qualquer que seja a fórmula adotada, — e o mais provável é que ela apresente variantes nos diversos países do continente — marcha, porém, em direção a um Estado de quatro poderes, ou mais precisamente, o Estado do quarto poder, no qual as Forças Armadas exerceram um papel de vigilância, controle e direção sobre o conjunto do aparato estatal. Esta característica estrutural e de funcionamento do Estado não será, a princípio, o resultado da subjugação do aparato estatal pelas Forças Armadas (além das estruturas próprias da democracia parlamentar que se sustenta) e do ordenamento legal de origem militar imposto à vida política, em particular as leis de Segurança Nacional. É de se assinalar que, no marco dessa democracia restringida, a palavra fascismo perderá até o caráter agitativo que tem hoje e será abandonada; mas esse abandono representará a renúncia a uma análise incorreta da situação atual, e não sua superação para uma análise superior e mais adequada às novas condições políticas surgidas, o que deixará a esquerda e o movimento popular desarmados para poder enfrentá-los.

Contudo, o projeto burguês-imperialista de institucionalização é o resultado também de um terceiro fator: o movimento de massas, frente ao qual se propõe o enfrentamento através do engano e da confusão, o que é problemático, errático e o ameaça inclusive com o fracasso. Assim, é indiscutível que, de maneira lenta, zigue-zagueante, o movimento de massas latino-americano entrou desde 1976 em um período de recuperação. Mais que isso, apresenta uma mudança em relação ao que vinha ocorrendo nos anos sessenta com uma característica nova, que até então era privativa dos países de maior desenvolvimento da região como Argentina, Chile, Uruguai; um claro predomínio da classe operária em seu seio. Não é preciso olhar para a América Central, Peru, Colômbia para se dar conta de que toda a classe operária da região se voltou ao eixo das massas trabalhadoras da América Latina, que se dobram progressivamente à sua condução e adotam suas formas de organização e de luta. Paralelamente, ainda que sua influência siga sendo grande em alguns países, o campesinato vai cedendo lugar a um proletário agrícola numeroso e combativo, agrupado de modo geral nos centros urbanos, que cria condições objetivas para concretizar a aliança operário-camponesa, enquanto a pequena burguesia urbana se compõe cada vez mais de camadas proletarizadas e, na maioria dos casos, empobrecidas, que mantém e acentuam a tendência, já observada no início dos anos sessenta, de deslocar suas alianças de classe em direção ao campo popular.

A ação destas amplas massas, ao mesmo tempo que faz mais necessário pôr em prática novas formas de dominação, que já não podem se basear na violência pura e simples, complica a implementação do projeto burguês-imperialista, na medida em que tendem a propô-lo com crescente autonomia, pressionando a favor de concessões não previstas, assim como a ampliação e aprofundamento das reformas propostas. Situando-se ainda marcadamente no plano da luta econômica e democrática, as massas não perderam a memória, particularmente em seus setores mais avançados, da memória socialista que, através da ação, a esquerda latino-americana levou ao largo dos anos sessenta, assim como desta década, o que desperta o temor da burguesia e do imperialismo, fazendo-os agarrar-se ainda mais às garantias que lhes oferece o Estado de contra-insurgência. Consequentemente, o processo de institucionalização se desenvolve de maneira extremamente complexa, sob o embate das pressões de massa e dos esforços da classe dominante pra manter o controle, o que impõe marchas e contramarchas e permite prever que seu limite está dado pela defesa a qualquer custo que fará de seu aparato estatal, tal como este se encontra hoje estruturado.

Assim, não há nenhuma razão para supor que a luta democrática que livra hoje as massas populares da América Latina possa estender-se indefinidamente, permitindo que, a certa altura, se dê o passo natural e pacífico ao socialismo. Tudo indica que a luta democrática e a luta socialista se entrelaçaram para os trabalhadores em um só processo de duro e objetivo enfrentamento contra a burguesia e o imperialismo.

  1. Analista político, filósofo e sociólogo, o professor colombiano Pío García, ao qual Ruy Mauro Marini se refere, encabeça o texto original “La cuestión del fascismo em America Latina”.
  2. Rómulo Betancourt, membro do partido Ação Democrática, exerceu a presidência na Venezuela entre 1945 e 1948 e posteriormente entre 1959 e 1964.
  3. Robert McNamara foi político e Secretário de Defesa dos Estados unidos durante os mandatos de John Kennedy e Lyndon Johnson, teve papel importante no envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã e em outras empreitadas imperialistas em Ásia.
  4. N.T. — O termo “populares” aqui foi escolhido em detrimento do termo “populismo” por se tratar da radicalização de movimentos que tem como primeiro condutor o povo.
  5. N.T. — O termo “Alemanha Federal” refere-se à República Federal da Alemanha ou Alemanha Ocidental, Estado que surge em 1949 e acaba com a unificação das Alemanhas em 1990.
  6. Jimmy Carter foi o 39º presidente dos Estados Unidos, de 1977 a 1981.

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