A questão do fascismo na América Latina, Pío García

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6 min readApr 19, 2021

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Texto traduzido do original ‘La cuestión del fascismo en América Latina’ contido nas exposições do seminário “Las fuentes externas del fascismo: el fascismo latinoamericano y los intereses del imperialismo”, 1978.

É apropriado levantar algumas breves considerações iniciais sem outro objetivo além de contribuir pra situar a discussão de hoje em relação a problemas determinados. Como ninguém ignora nesta reunião, desde o golpe de Estado de 1964 no Brasil, e mais ainda, desde setembro de 1973, com o golpe de Estado no Chile e a instauração da ditadura de Pinochet, a literatura de ciências sociais e política em América Latina vêm se ocupando crescentemente da discussão sobre a presença de regimes de caráter fascista na região.

Se trata propriamente de uma discussão, isto é, do tratamento de um tema cujas premissas e desenvolvimentos expuseram caracterizações e interpretações diversas entre as quais se suscitou forte controvérsia. A discussão não se reduz, certamente, às diferenças existentes quanto à definição dos regimes ou as formas de dominação surgidas na América Latina, mas pelo contrário, se vinculam a diferenças e controvérsias existentes tanto quanto às formas de compreensão e interpretação geral dos problemas do desenvolvimento latino-americano.

Aqui há precisamente o interesse de considerar estas questões com Theotonio dos Santos, Ruy Mauro Marini e Agustín Cueva, que contribuíram com trabalhos importantes a respeito do âmbito geral da teoria do desenvolvimento latino-americano como também a respeito do tratamento, em especial, da questão do fascismo na América Latina.

Me parece que o debate se realizará na mesma medida em que não se ignore, mas que atenda efetivamente os pontos de vista discrepantes expressados nas propostas e formulações recentes, e em particular pelos próprios participantes da discussão. Efetivamente, entre os três expositores reunidos se expressaram marcadas diferenças.

Para alguns no desenvolvimento de suas investigações, destacou-se a elaboração da categoria da dependência, pelo estudo da forma dependente do desenvolvimento capitalista latino-americano. Tal é o caso claro de Dos Santos, de quem acabamos de conhecer Imperialismo e dependência, e de Marini, com Dialética da dependência, subdesenvolvimento e revolução. Cueva, pelo contrário, que acaba de publicar seu livro sobre O desenvolvimento capitalista da América Latina, considera criticamente a chamada “Teoria da Dependência”, particularmente em seu artigo trazido pela primeira vez à discussão no Congresso Latino-Americano de Sociologia de São José da Costa Rica, em 1974.

Esta é uma ordem de diferenciação que está posta entre os expositores deste texto, mas não é a única; há, ainda, disparidades que nem sempre são coincidentes com as que existem nesse primeiro plano.

Quanto às considerações acerca do chamado fascismo dependente, fascismo crioulo ou neofascismo, Dos Santos e Cueva estão entre aqueles que abraçaram a caracterização de fascista em relação a determinados regimes militares na América Latina durante as últimas três décadas. Marini, ao contrário, apesar de nunca deixar de empregar a expressão “fascismo militar” em alguns de seus trabalhos, se orienta rumo a uma caracterização em termos alternativos.

A situação se complicaria mais se introduzíssemos aqui elementos que se fizeram presentes em algumas referências recentes sobre o tema, segundo as quais a caracterização de fascismo dependente corresponde a uma projeção política mecanicista, atribui à deformação limitante do que o qualifica como economicismo dependente. Tais referências, que para a crítica do dependentismo se apoiam, por exemplo, no trabalho de Agustín Cueva, paradoxalmente elas não consideram que apesar da sua crítica à “Teoria da dependência”, Cueva aceita a categoria do fascismo.

As indicações anteriores dão uma ligeira ideia dos termos bastante contraditórios em que se desenvolve a discussão na atualidade, e creio que seria benéfico a todos se as exposições que escutamos nos permitem adentrar, da maneira mais viva possível, nas diferentes posições que se abordem as questões que suscitam o debate.

A respeito disso, me atreveria a sugerir alguns problemas que me parecem entre os mais débeis tratados nos ensaios de compreensão do caráter dos regimes sobre os que discutem a pertinência da categoria de fascismo.

Em primeiro lugar, o problema de se precisar do âmbito, do plano, do nível de análise de que se trata. Considera-os puramente regimes como tais, ou seja, como modos determinados de articular o exercício do poder? Ou os considera como formas estatais, ou seja, como expressões que assume a realidade do Estado frente às condições de uma certa forma de acumulação que tende a permitir a subsistência do desenvolvimento capitalista na América Latina? Isto é, o primeiro problema que creio ser de interessante aplicação em nossos planejamentos, é o de se considerar aos regimes de referência meramente como modalidades de exercício do poder surgidas ante situações ou conjunturas determinadas da luta de classes, ou os considerar como expressão de formas estatais, como regimes correspondentes a formas estatais que respondem a tendências profundas da luta entre as classes, as próprias modalidades de acumulação que se fizeram necessárias no reajuste do desenvolvimento capitalista.

A questão importa porque em determinadas linhas de análise geralmente vislumbra-se a ideia de que esta forma de regimes viria a representar algo como anomalias ou perturbações, em qualquer caso removíveis na medida em que se superem as circunstâncias críticas que impuseram sua implantação, para reabrir então a possibilidade de desenvolvimento capitalista de formas democráticas.

Independentemente de aceitar ou não sua caracterização de fascista, me parece que a discussão sobre as determinantes estruturais profundas do surgimento e existência dessa índole de regimes contém, pois, uma implicação política de considerável importância, na medida em que tende a esclarecer a questão de suas propensões à resistência.

O segundo problema que gostaria sugerir se refere à fase atual em que, claramente desde Carter, se advertem propostas ou esforços que tendem a promover o que se convencionou chamar de “democracias tuteladas”, ou seja, o estabelecimento de formas mais flexíveis às quais se daria lugar os regimes atuais.

Sem considerar a índole dos fatores aos quais respondem, creio que se possa reconhecer a aparição efetiva de pressões encaminhadas à pretensão de iluminar nesses regimes alguns de seus traços mais flagrantemente ditatoriais. Há amplos setores da esquerda latino-americana que concebem a eventualidade de intentos de democratização limitada como base propícia para situações de transição de outro caráter. As tentativas de democratização limitada, ainda as que se impulsionam de dentro do seio desses regimes e dos centros imperialistas, se consideram assim em sua potencialidade de desenvolvimento e maturação de novas forças e contradições, até que se apresentem novas situações políticas que permitam reformular opções revolucionárias.

É por trás dessa questão que subjaz o problema que quero me referir. Qual é, efetivamente, a possibilidade de que situações de transição deste caráter se sustentem no caso dos países dependentes da América Latina? Quais são as possibilidades de resistência, de estabilidade, de situações de transição que não modifiquem, mas que mantenham as condições materiais, estruturais, que moldaram os regimes ditatoriais? Me parece que este problema se relaciona profundamente com as considerações relativas ao que são os traços do novo padrão de acumulação assumido pelo capitalismo nos nossos países, que seguirá sendo a realidade objetiva condicionante das eventuais decomposições dos regimes ditatoriais ou de processos de abertura de maiores âmbitos para o desenvolvimento da luta propriamente política.

Há um terceiro problema sobre o qual creio ser de sumo interesse escutar aos expositores. Na discussão acerca do caráter fascista ou não-fascista de determinados regimes latino-americanos, se fez usual destacar a importância política que certamente reveste sua definição. Se estabelece a razão desta importância em termos de sustentar que, segundo se aceite ou não a caracterização de fascista, se está atribuindo um distinto âmbito de sustentação social às ditaduras e, em consequência, se reconhecem âmbitos também distintos de alianças possíveis para a luta contra essas ditaduras. A questão do caráter fascista ou não-fascista destes regimes é uma proposta ao problema central nas definições estratégicas da linha política revolucionária, como possibilidades de formação de alianças na luta contra a ditadura e seu desenvolvimento revolucionário.

Ocorre, porém, que praticamente em todos os trabalhos se utiliza desse reconhecimento para formular propostas determinadas sobre o caráter fascista ou não-fascista dos regimes, mas poucas vezes ou nunca elucidam as consequências políticas dos mesmos. Ou seja, na literatura sociológica sobre o tema se destaca a importância da discussão sobre o caráter fascista ou não-fascista de tais regimes quanto às afirmações sobre as possibilidades de entendimento entre distintas forças sociais para a luta contra a ditadura. Mas feito esse reconhecimento, na mesma literatura sociológica não se fazem formulações a respeito das alianças que corresponderiam à caracterização pela qual se está advogando.

Para estabelecer essa correspondência entre as análises sociológicas e as abordagens políticas é necessário recorrer diretamente aos documentos políticos. Na literatura sociológica existe um vazio. Agora, bem, tal correspondência resulta num julgamento meu mais claro quanto àqueles que sustentam o caráter fascista dos regimes de referência. Mas é muito mais complexo estabelecer a qual índole de propostas políticas, a quais formações de alianças possíveis de luta contra a ditadura, respondem caracterizações que se mostram como opostas ou substitutas da do neofascismo, tais como as do Estado de contrainsurgência, Estado de segurança nacional, Estado militar ou Estado em processo de militarização.

Estes são os três pontos que foram compreendidos nas intervenções dos expositores.

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