A modernidade metropolitana e os mundos coloniais, Enrique Dussel

somos de acá
4 min readDec 30, 2020

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Enrique Dussel, 1934 —

Traduzido do original ‘La modernidad metropolitana y los mundos coloniales’, disponível em “Filosofias del sur y decolonización”, no capítulo ‘Sentido de uma agenda de temas filosóficos a serem debatidos num debate Sul-Sul’.

Penso que toda filosofia foi sempre inevitavelmente etnocêntrica (a chinesa, grega, romana, árabe, ameríndia, etc.), já que a partir de uma certa ingenuidade ontológica, considerava a ver próprio mundo (sua totalidade cultural como compreensão do sentido da existência humana) como o centro em torno ao qual girava a humanidade. Este etnocentrismo, porém, era empiricamente local, regional. Mesmo o imenso império chinês, que sempre se teve como o “centro” do universo, não deixava de ser particular e tinha uma obscura consciência que havia em seu entorno, perto e longe, outros povos que mesmo julgando inferiores, tinham consciência tranquila porque se suspeitava que o conhecimento era limitado e que uma imensa exterioridade ignota, deixada nas trevas e na escuridão do inexplorado, podia irromper a qualquer momento.

Relato de viajantes esporádicos contavam aventuras em regiões desconhecidas, a quem não era dado muito crédito mas, de toda maneira, alimentavam essa consciência nunca totalmente clara de estarmos rodeados por fantasmas, seres monstruosos, abismos insondáveis, como o Atlântico era representado pelos europeus sitiados pelo mundo árabe-muçulmano na chamada por eles de Idade Média.

Ainda assim, o etnocentrismo tradicional alcançou, como veremos, pela primeira vez na história da humanidade os confins do próprio planeta, e pôde começar a compreender a circularidade da terra em pleno século XV. Sejam os chineses, os portugueses ou espanhóis, puderam por meio de uma navegação desenvolvida empiricamente dar a volta no esférico planeta terra, e pode então converter o mero etnocentrismo particular em um etnocentrismo mundial. Se trata da expansão moderna da Europa mediterrânea primeiro, e posteriormente da Europa do norte, e do início do fenômeno que hoje denominamos de globalização.

A modernidade europeia surge simultaneamente graças à centralidade mercantil do Atlântico Norte, ao fenômeno do capitalismo, que em sua primeira etapa mercantil acumula dinheiro, ao eurocentrismo, à revolução científico-tecnológica. Nasce igualmente uma filosofia moderna que vomitará o privilégio de ser o único desdobramento da razão humana por sobre os relatos míticos (e com eles desacredita todas as religiões universais e particulares do Sul). Esta filosofia tem não somente a pretensão de ser universal, planetária, expressão da razão humana como tal, mas sim ao mesmo tempo valorizar ao mesmo tempo as outras filosofias regionais da periferia (chinesa, árabe, latino-americana, etc.) como ‘atrasadas’, ingênuas, particulares. Toda sua argumentação (iniciada já no final do século XV no choque cultural que consistiu a conquista espanhola no mar do caribe se concentra em mostrar a superioridade da civilização europeia, e de pouco a pouco a superioridade de sua filosofia. Isto impedirá, junto à ocupação militar, a destruição das vias comerciais anteriores, o posterior desenvolvimento da Europa, e que as outras culturas que desdobrem uma nova perspectiva da história mundial. Pretendiam defender-se estas culturas coloniais repetindo o valor de suas glórias passadas, mas não podiam dar conta dos novos acontecimentos nem podiam criar argumentos contra essa pretendida superioridade. De fato, foram como caminhos pelos acontecimentos e não puderam fazer frente durante séculos a nova filosofia europeia.

Este panorama não deve ser exagerado, porque na verdade houve alguma criatividade particular em todas as regiões da periferia, mas prontamente não serão coletadas em histórias regionais das filosofias comparadas com o avanço da filosofia moderna europeia que, desde Descartes, cobrará indiscutível hegemonia ainda entre as elites coloniais.

Um certo juízo histórico se expandiu na periferia. Era verdade que se praticava um discurso filosófico na periferia com figuras localmente importantes, mas como podia comparar-se com o pensamento de Kant, Hegel, Nietzsche, Heiddegger, etc.? A pergunta era mal formulada e por isso a resposta era parcial e encobridora. Na América Latina se dizia até pouco tempo: “Não há uma filosofia latino-americana!”, se por filosofia se entende a prática deste discurso teórico tal como o mostra a filosofia moderna europeia. Mas certamente há vários filósofos, correntes filosóficas que na região latino-americana fundamentaram processos culturais, políticos, econômicos ou tecnológicos, e que interpretaram o sentido da vida de nossa região e cultura. Mas tiveram reconhecimento geral, não global, próprio de uma cultura periférica.

Devemos, então, meditar detalhadamente as causas que produziram o eclipse das filosofias da periferia, para ter clara consciência dos fatores negativos que devem ser superados para hoje poder empreender o crescimento das filosofias do mundo pós-colonial, periférico ou dominado pelas metrópoles europeias, cuja dominação não foi somente militar, econômica ou política, mas sim igualmente ideológica, cultural, e fundamentalmente filosófica.

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