A grande propriedade e o poder político, José Carlos Mariátegui

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5 min readApr 24, 2021

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Trecho traduzido do original ‘La grand propriedad y el poder político’ da obra “El problema de la tierra” de José Carlos Mariátegui.

Os dois fatores que impediram o que a revolução de independência propôs e abordou nos problemas do Peru agrário — extrema incipiência da burguesia urbana e situação extra social dos indígenas, como definiu Echeverría — impediram mais tarde que os governos da república desenvolvessem uma política dirigida de alguma forma a uma distribuição menos desigual e injusta da terra.

Durante o período do caudilhismo militar, em vez de fortalecer a demografia urbana, a aristocracia latifundiária se tornou mais robusta. Com o comércio e as finanças nas mãos de estrangeiros, não era economicamente possível o surgimento de uma vigorosa burguesia urbana. A educação espanhola, radicalmente estranha aos fins e necessidades do industrialismo e do capitalismo, não preparava comerciantes nem técnicos, mas sim advogados, literatos, teólogos, etc. Estes, a menos que sintam uma vocação para o jacobinismo ou para a demagogia, teriam que constituir uma clientela da casta proprietária. O capital comercial, quase exclusivamente estrangeiro, não podia fazer outra coisa além de estender-se e associar-se com esta aristocracia que, por outro lado, tácita ou explicitamente, conservava seu predomínio político. Foi assim que a aristocracia terratenente e suas ralliés se tornaram beneficiários da política fiscal e da exploração do guano e do salitre. Foi assim também como esta casta, forçada por seu rol econômico, assumiu no Peru a função da classe burguesa, ainda que sem perder seus traços e preconceitos coloniais e aristocráticos. Foi assim, enfim, que as categorias burguesas urbanas — profissionais, comerciantes — acabaram por ser absorvidas pelo civismo.

O poder desta classe — civil ou neogótica — procedia em grande medida da propriedade da terra. Nos primeiros anos da Independência, não era precisamente uma classe de capitalistas mas sim uma classe de proprietários. Sua condição de classe proprietária lhe permitiu solidarizar seus interesses com os interesses dos comerciantes e dos credores estrangeiros, e trafegar assim, entre o Estado e o patrimônio público. A propriedade da terra, devido ao vice-reino, lhe havia dado a possessão do capital comercial sob a República. Os privilégios da Colônia haviam engendrado os privilégios da República.

Era, portanto, natural e instintivo desta classe o critério mais conservador a respeito do domínio da terra. A subsistência da condição extrasocial dos indígenas, por outro lado, não opunha os interesses feudais dos latifundiários às reivindicações das massas campesinas conscientes.

Estes foram os fatores principais da manutenção e desenvolvimento das grandes propriedades. O liberalismo da legislação republicana, inerte frente à propriedade feudal, se sentia ativo somente frente à propriedade comunitária. Se não podia fazer nada contra o latifúndio, podia fazer muito contra a “comunidade”. Em um povo de tradição comunista e comunitária, dissolver a “comunidade” não servia para criar a pequena propriedade. Não se transforma uma sociedade artificialmente. Menos ainda uma sociedade camponesa, profundamente ligada à sua tradição e a suas instituições jurídicas. O individualismo não teve sua origem em nenhum país, nem na Constituição e nem no Código Civil. Sua formação sempre tendeu a um processo mais complicado e espontâneo. Destruir as comunidades não significava converter os indígenas em pequenos proprietários e nem sequer em assalariados livres, mas sim entregar suas terras aos gamonales e sua crientela. O latifundiário encontrava assim, mais facilmente, o modo de vincular o indígena ao latifúndio.

Pretende-se que a primavera da concentração da propriedade agrária na costa foi a necessidade dos proprietários de dispor pacificamente de suficiente quantidades de água. A agricultura de irrigação, em vales formados por rios de baixo fluxo, foi determinante para o florescimento da grande propriedade e para o sufocamento da média e pequena propriedade. Mas esta é uma tese específica e somente verdade em poucas partes. Porque a razão técnica ou material que superestima, unicamente influencia na concentração da propriedade desde que se tenha estabelecido e se desenvolvido na costa vastos cultivos industriais. Antes destes prosperarem, antes da agricultura da costa adquirir uma organização capitalista, os motivos dos riscos eram muito pequenos para decidir a concentração da propriedade. Certamente a escassez de água para irrigação, pelas dificuldades de sua distribuição entre múltiplos irrigadores, favorece a grande propriedade. Mas não é certo que esta seja a origem do fato da propriedade não ter se subdividido. As origens do latifúndio costeiro remontam à origem colonial. O despovoamento da costa, consequência da prática colonial, é também grande causa e razão do regime da grande propriedade. O problema das armas, o único que afetou o terratenente costeiro, tem todas suas raízes no latifúndio. Os terratenentes quiseram resolvê-lo com o escravo negro nos tempos da colônia, com o coolie chinês nos da república. Esforço em vão. Não se povoa a terra com escravos. E sobretudo não a fecunda assim. Devido a sua política, os grandes proprietários tem na costa toda a terra que se pode ter; mas em troca não se tem homens o bastante para vivificá-la e exportá-la. Esta é a defesa da grande propriedade. Mas é também sua miséria e seu vício.

A situação agrária da serra demonstra, por outro lado, a parte artificial da tese anteriormente citada. Na serra não existe o problema da água. As chuvas abundantes permitem, ao latifundiário e ao comunero, os mesmos cultivos. No entanto, também na serra se constata o fenômeno de concentração da propriedade agrária. Este fato prova o caráter essencialmente político-social da questão.

O desenvolvimento de cultivos industriais, de uma agricultura de exportação, nas fazendas da costa, aparece integralmente subordinado à colonização econômica dos países da América Latina pelo capitalismo ocidental. Os comerciantes e credores britânicos se interessaram pela exploração destas terras quando comprovaram a possibilidade de dedica-las com vantagem à produção de açúcar primeiro e algodão depois. As hipotecas da propriedade agrária colocaram, em boa parte, desde há muito tempo, sob o controle de empresas estrangeiras. Os fazendeiros, devedores dos comerciantes, credores estrangeiros, serviam de intermediários ao capitalismo anglo-saxão para assegurar-lhes a exploração de campos cultiváveis a um custo mínimo por trabalhadores braçais escravizados e miseráveis, curvados sobre a terra sob o chicote os senhores coloniais.

Mas na costa o latifúndio alcançou um grau mais um menos avançado de técnica capitalista, mesmo sendo construído sobre práticas e princípios feudais. Os coeficientes de produção de algodão e cana correspondem aos do sistema capitalista. As empresas contam com capitais poderosos e as terras são trabalhadas com máquinas e procedimentos modernos. Para beneficiar e manufaturar os produtos funcionam poderosas indústrias. Enquanto isso, na serra as cifras de produção das terras latifundiárias não são geralmente maiores do que as das terras de comunidades. E, se a justificação de um sistema está em seus resultados, como o quer o critério econômico objetivo, somente este dado já condena o regime de propriedade agrária na serra de maneira irremediável.

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