Arte na revolução & Revolução na arte, Sergei M. Tretyakov

somos de acá
12 min readApr 28, 2022

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Escrito em 1923 no idioma russo, publicado como “Искусство в революции и революция в искусстве (эстетическое потребление и производство) [Iskusstvo v revoliutsii i revoliutsiia v iskusstve (esteticheskoe potreblenie i proizvodstvo)]” en Горн (Gorn), revista do Proletkult, no. 8 (1923), pp. 111–118.

Um olhar detalhado à atual arte russa, aos desenvolvimentos das atividades dos trabalhadores da arte na Rússia e no exterior revela um surpreendente grau de coesão entre as forças dos pintores e dos escritores da direita.

Um simples olhar às revistas dos emigrados [da revolução soviética de 1917] revela que sob o ódio e a fúria que se expressam sobre aos criadores da nova União Soviética (os “viciados e malandros” como chamam aos trabalhadores da revolução) há um coro de suspiros que se referem aos grandes escritores e artistas, dos bons livros e dos ótimos apartamentos, acerca dos intelectuais que são o sal da terra. Estes bastardos trazem à luz todos os “grandes” — Tolstói e Pushkin, Bruvel e Roerich — para que sirvam de artilharia pesada em defesa da grandeza do passado (que é o mesmo que dizer: “os bons dias do passado”).

Esta pandilha de expatriados se queixa e geme frente ao balé russo e ao teatro artístico que consola os filisteus estrangeiros. As páginas de suas revistas estão cheias de intermináveis discussões sobre os “encantadores contos folclóricos” e o “mundo sonhador” no qual o teatro, as pinturas e a poesia sequestram as almas dos leitores e espectadores cansados da vida diária. Juntam “belezas eternas e outras verdades inquebráveis quanto ao florescimento dos movimentos religiosos na Rússia. Com uma persistência ainda maior, criam visões desta Rússia ruiva, desta Rússia de música cigana romântica, de gazebos dourados, de bolos, de troikas, de camas filisteias e de bem-estar físico.

Não valeria mencionar o fenômeno se ele só existisse nos círculos de emigrados russos. Deixem que os mortos sepultem seus próprios mortos.

Mas não: a frente única da arte emigrada tem suas asas tenazes na Rússia. Sob a proteção da NEP, este lixo segue se arrastando em cada canto da Rússia, mas aqui com mais sigilo e cautela. Decidiram que é a hora em que a revolução deve morrer (como se a revolução fosse uma ventania que se pode eliminar fechando a janela); que uma vez mais é a hora de chamar os “melhores e mais brilhantes” (leia-se: a intelectualidade burguesa) da cultura russa; e que não se fala o suficiente da conexão individual com os esforços titânicos da produção coletiva. A humanidade — que, orgulhosa, sonha por si só. E na vida diária, a humanidade está sujeita ao poder dos objetos e ao meio ambiente habitual. Em resumo: viva o conforto filisteu e doméstico, viva nosso passado imoral, glória a Deus nas alturas (ele cumpre suas promessas), paz na terra e bem-estar para a humanidade — mas “não me incomode com nada que seja mais próprio quintal.”

A luz guia desta ala reacionária é São Petesburgo, aquela empobrecida “especialista nas tradições” da grande “arte russa”.

E provavelmente não valeria a pena escrever outra vez sobre estes grupos se não demonstrassem uma força tão poderosa em nosso estado presente de esgotamento e se não sentíssemos que são a expressão de atitudes de sobrevivência.

Por outro lado, também se detecta uma certa desordem e discordâncias no campo daqueles vanguardistas revolucionários que fazem conexões entre os assuntos da revolução e aqueles da arte.

Quando alguém encontra-se com declarações exageradas dos dirigentes da imprensa revolucionária que dizem que finalmente temos uma “vida diária soviética”; quando o mítico Andrei Belyi é a fonte de inspiração dos poetas proletários; quando uma onda de literatura bela aparece; quando as novelas e narrativas são escritas para representar episódios e sensações revolucionárias, então se faz evidentes o quão pouco faz o sistema revolucionário para reavaliar todos os setores da vida sendo aplicados à arte. Não esqueçam que temos entrado em um período no qual devemos tomar nossos pensamentos e sensações que constituem as reais “conquistas da revolução” para cristalizá-las na consciência. Hoje, a frente mais crucial é a da organização ideológica do indivíduo. E esta campanha precisa de intensa “luta por consciência” que está se dando “pela existência” na política e na economia. Não nos aliamos a estes fatalistas, com aqueles “simplificadores” do marxismo que propõem que a consciência nascerá “espontaneamente” quando as formas de produção mudem. Não, consideramos que todo o conhecimento que ilumina os problemas revolucionários e que todas as sensações que reforçam a atividade artística podem ser realmente secundárias, mas se mantém ativas. Estes fatores estão reestruturando a pessoa e acelerando nosso progresso no caminho em direção à construção de uma “comuna mundial de produtores”.

Se decididamente este fosse o caso, então dentro do campo daqueles construtores da arte que não creem que a revolução seja um fato casual ou algo que caiu “do céu”, deveriam considerar cuidadosamente vários problemas fundamentais.

Objetivamente, a revolução é um processo histórico que mude as hierarquias de classe e abarca uma aceleração dramática na velocidade de mudança dentro das formas socioeconômicas. Subjetivamente, significa a consciência de novas tarefas e novas ferramentas para que quem as faça seja um indivíduo organizado segundo os interesses de seu coletivo.

Não é a arte um processo produtivo dentro de outros modos de produção? Que tipo de relação tem a arte com a vida? Qual é a função da arte na vida?

Têm as obras de arte um valor absoluto ou estão subordinadas ao princípio da relatividade que é o núcleo da dialética marxista? O que desencadeia a produção de produtos estéticos (obras de arte) e o que condiciona o consumo desses produtos pelo coletivo?

A partir da perspectiva do comunismo, em que direção se deveria desenvolver e consumir esta produção? As tarefas da revolução no campo da arte se resolvem na representação e no reflexo, ou a arte se depara com tarefas organizativas e construtivas que não foram cumpridas com as formas que existiam até agora? Que tipo de mudanças nos princípios da “forma e conteúdo” demanda a revolução?

Estas são algumas das perguntas que exigem a máxima atenção de quem crê que todas as formas de atividade humana (incluindo a arte) deveriam estar subordinadas às tarefas fundamentais da organização.

Apesar de não estarmos fazendo esta pergunta pela primeira vez, se deve dizer que os construtores da nova vida, de algum modo, a ignoraram. Este assunto não chegou a ser um dos pontos centrais nas batalhas entre as ideologias estéticas velhas e novas. Se lhes considerou somente em forma parcial. Muitas poucas vezes lhes consideraram profundamente. Geralmente as pessoas simplesmente as descartavam e preferiam prosseguir cegamente, orientando-se não tanto para o “futuro a ser criado”, mas para a mesma “velha cultura de ontem”.

Portanto a pergunta se refere a como fortalecer nossas posições e a como definir e ativar a luta contra aqueles que estão ressuscitando as velhas estéticas.

Como resolveram estas perguntas sobre a arte e sua relação com a vida durante o tenso período da revolução os que verdadeiramente dirigiam a energia revolucionária?

Há palavras de ordem: Arte para todos! Arte para as massas! A arte às ruas!

Estas palavras de ordem parecem ser vagas ao levar em consideração que a arte tem dois aspectos: a objetivação de experiências e sensações privadas em uma (criação) material, e o efeito das formas criadas nas mentes humanas (percepção).

Sob estas condições da sociedade burguesa, estes dois aspectos se distribuíram entre dois grupos claramente distintos. O grupo daqueles que percebiam — uma audiência passiva que usou grande parte de sua vida a trabalhos que não desejavam nem tinham uma finalidade — se dedicavam a encher seu tempo com uma atividade que lhes dava algum prazer e interesse e isso aumentava os espíritos com um mínimo de gasto de energia. As pessoas buscavam algum lugar onde escapar da monotonia e da insipidez da vida diária. E os pintores, poetas, músicos e atores foram a seu resgate. Sob as marcas da edificação, perfeição e visões espirituais transcendentais, lhes ofereceu uma vida fictícia que era diferente das próprias vidas das pessoas e que aceitavam tristemente, mas sem falhar. As pessoas eram transportadas a épocas diferentes, a outros ambientes, a fantasias. A arte foi um truque sedutor com uma qualidade quase hipnótica. Se tratava de um narcótico que na mente humana criava uma vida diferente que era paralela à vida real. Esta outra vida pode ter sido espectral, mas era muito mais atrativa pela mesma razão.

O artista se transformou em um bruxo e ilusionista, um advinhador e um profeta que recebia seus talentos do céu. Por suas destrezas de trabalhar com o material era chamado de “gênio” — uma palavra que dava um tom milagroso. Em oposição a esta arte, nasceu o realismo e o naturalismo, cuja tarefa foi refletir a vida tal como ela é. Mas esta segunda corrente pendeu em direção ao fotografismo, em direção à ilustração da vida diária e da história das atividades da sociedade. Como o realismo e o naturalismo somente registraram o que já estava ali, se arrastavam atrás da vida, geralmente sistematizando-a, mas muito poucas vezes organizando-a na direção das formas desejadas.

Devemos sublinhar a importância do movimento artístico que desenvolveu métodos para a utilização deliberada e intencionada do material artístico (palavra, cor, som, materiais sólidos). Desenvolveu esses métodos em seus laboratórios ao concentrar toda a atenção do artista sobre o material que lhe era apresentado e nos meios de tratamento e organização (composição). O principal eixo deste movimento estava conectado com os grupos de esquerda que tendiam a produzir a psicologia humana ativa e destra.

A psicologia da pessoa de trabalho já emergia na antecâmara da revolução. Suas características: um esforço sempre prazeroso para superar o fenômeno caótico e inerte e o desenvolvimento incansável de novos métodos de organização.

O trabalho artístico integrou a arte às fileiras dos processos ordinários de produção ordenada que usava materiais linguísticos, cromáticos, plásticos e musicais da maneira mais expedita. Contudo, na maioria dos casos esse trabalho não é considerado revolucionário. A qualidade revolucionária da criação tipicamente só significava o uso de um tema ou imagem revolucionária na obra. E é por isso que, na criação poética e artística de nossa época, a revolução segue sendo um “acontecimento” sobre o qual as pessoas escrevem, o qual as pessoas descrevem. Este fenômeno se chama temática revolucionária. Somente mudou o tema. Todo o resto ficou com a arte velha que se separou da vida ou que ficou a reboque dela. As pessoas que haviam usado linhas métricas de versos medidos e regulares para louvar a noite estrelada, o aroma das flores ou sua melancolia e nostalgia agora começavam a louvar a revolução.

Assim como em uma prisão redonda, as pessoas se veem forçadas a olhar a revolução através de uma pequena janela de versos. Ao mesmo tempo, uma linguagem totalmente nova e econômica se desenvolve paralelamente à arte, e muito independente dos deputados soviéticos, da tcheka e dos sorabis. De sua tribuna, o orador faz descrições precisas, palavras compactas, sarcasmos e palavras de ordem para as pessoas. É tão importante a forma como alguns exaltam a revolução? Naturalmente, a revolução mudou fundamentalmente a maneira a maneira como ele vê, sente e nomeia todos os objetos ao seu redor. Até o tempo da revolução, a arte teve a característica de culto ornamental, e permaneceu indiferente ao materialismo dialético que lhe assinala uma função secundária a todos os objetos e fenômenos dando-lhes um propósito prático. O poeta se encontrou cumprindo as funções de sacerdote que entra na mesma velha igreja para fazer a mesma velha liturgia, ainda que agora celebra a Marx em vez de Cristo.

É verdade que algumas pessoas propuseram o princípio da arte de agitação, ou seja, o uso das obras de arte para a persuasão e instrução. Mas aqui também se esquecem de duas coisas: (1) Por que deveria a “ordem” do poema e o pôster de agitação ser mais atrativos que uma resolução, um comando, uma circular? E (2) não sofre a força de agitação de um poema se for composto com as mesmas formas que antes eram usadas para distrair a pessoa do momento presente, prático?

Não resta dúvida, o poema continuou sendo poema, o pôster continuou sendo uma imagem, ou seja, organismos estéticos isolados. E todo o entorno do discurso do ser humano vivente seguiu incólume, que segue em um estancamento contínuo de aborrecimento e inexpressividade. Entendemos dos versos que a revolução é grande, vermelha e mundial; que é tremendamente divertida e sagrada, etc. Mas quase ninguém nos mostrou que tipo de palavras se podem usar para nomear os objetos que rodeiam a pessoa inspirada pela revolução. Sem dúvidas, dar um novo aspecto às relações de alguém com o mundo é uma precondição para a ação revolucionária.

E agora — sobre o outro lado dos processos da produção artística: o consumo coletivo das obras de arte.

Pode-se pensar que a casta de especialista que, no “transporte da inspiração”, trouxe dos céus a chama sagrada das palavras e imagens expressivas, das combinações cromáticas e acústicas — alguém poderia pensar que esta casta acabaria com a revolução. Todos deveriam falar e mover-se expressivamente, pintar todos os objetos em cores expressivas e introduzir em cada objeto que eles criam o mesmo grau de precisão, qualidade e atenção que até agora tinham somente os especialistas que se dedicaram a este tema — os buscadores da forma, os trabalhadores da arte. Lembrem-se que na infância, todas as pessoas desenham, dançam, inventam palavras, cantam. Por que então crescem para tornarem-se extremamente inexpressivo? E somente às vezes vão admirar a “criação” de um artista? Isto não se origina dentro das condições de trabalho capitalista que transformam os processos de trabalho em uma maldição, e não é fato que as pessoas urgem por momentos de tempo livre? É normal converter um trabalhador especializado em um espectador-consumidor? E, portanto, perder seus instintos criativos ativos?

Arte para todos! Esta palavra de ordem deveria ter significado o mais alto grau de destreza e adaptabilidade em todas as atividades práticas de alguém — se se fala, lixa madeira ou afia ferro, convencendo uma plateia, comandando um exército, andando na rua ou costurando um vestido. A felicidade de transformar matéria prima em uma forma socialmente útil, combinado com a habilidade e a perseguição intensa da forma mais conveniente: isto é o que deveria chegar a ser “arte para todos”. Cada pessoa deveria ser artista, o mestre absoluto do que esteja fazendo no momento.

Mas, ao invés de entender o processo de trabalho socialista como algo feliz e necessário, as pessoas se entregam para a arte velha que se desenvolve paralelamente à arte. “Arte para todos” somente chega a ser uma mera democratização da arte velha. Os objetos da criação artística são possivelmente acessíveis a toda a gente: salas de concerto, teatros, galerias de artes visuais estão cheias de massas trabalhadores. Ao invés de reconhecer o verso como uma tentativa preliminar para organizar a linguagem humana viva; ao invés de pensar o teatro como a primeira iniciativa em direção à construção da vida ritmicamente coordenada, etc., as pessoas novamente estão “absortas na contemplação” e estão “experimentando a vida indiretamente”.

Pelo contrário, esta democratização da arte levou as obras de arte que alguma vez transportaram os maestros da vida previamente ao “mundo da arte” e lhes transformou em elegantes divãs para a vida dos novos senhores, os proletários. O ambiente burguês e as odiadas condições de trabalho somente atrincheiraram o desejo habitual de passar o tempo de descanso em uma contemplação estática, abismados pelos encantos do verso, a melodia e a dança.

Existem mentes realmente responsáveis, dirigentes na esfera da arte “revolucionária” que, por exemplo, dizem que o teatro é uma “maneira de passar o tempo de descanso do proletariado esgotado após um dia de trabalho”? Devemos relembrar que foi a maldição do trabalho forçado que gerou essa necessidade atual. Foi esta maldição que preparou as pessoas para assimilar a neblina da “cultura burguesa” que impregnou a passividade e a contemplação: a arte foi a melhor maneira para escapar de suas rotinas pré-fabricadas para outros mundos. Por exemplo, nos Estados Unidos, onde tem a “Associação Cristã de Moços”, uma organização colossal apoiada pelo financiamento capitalista, fundada para preencher o tempo livre das classes trabalhadoras com atividades parcialmente religiosas, parcialmente estético-contemplativas, e por conseguinte impregnar-lhes com a psicologia inerte da satisfação pequeno-burguesa. É isso que desejamos?

A democratização da arte da maneira que se pratica hoje pode ter uma qualidade positiva: nos dá um serviço educativo ao familiarizar as massas com as expressões estéticas das gerações precedentes. A verdadeira “arte para todos” nunca deveria consistir em transformar todas as pessoas em espectadores, mas sim o contrário: consiste em dominar aquele que previamente foi a propriedade especial dos especialistas da arte — dominar todas as qualidades e habilidades necessárias para construir e organizar a matéria-prima. Isso é o primeiro. O segundo é a participação das massas no processo de “criação”, que até agora somente usaram indivíduos para conduzir suas “liturgias”.

Em seu movimento, nossas vidas práticas, em seus ascensos e descensos, descobrimentos e catástrofes, alegrias e infortúnios; nossa vida que ao coletivizar a produção e o consumo está forçando a individualidade isolada a juntar-se no bloco eterno da coletividade; nossa vida em sua totalidade — este é o único tema importante e essencial ao redor do qual deveriam organizar a palavra, o som, a cor, o material e a atividade humana.

Em relação com a revolução e as perspectivas que ela cria, devemos apresentar e investigar o problema da arte como produção e consumo estético — o problema das interrelações entre arte e vida. Em cada momento, todas as manifestações da vida prática devem estar coloridas pela arte. Todos devem chegar a serem artistas e construtores de suas vidas. Quiçá versos líricos — os fogos artificiais da iluminação poética e a reencarnação — desaparecerão de nosso mundo. Mas sobreviverão como modelos exemplares da reconstrução da linguagem. O centro de gravidade da arte estará situado na própria vida, nas linhas e formas de seus objetos, na linguagem diária, nos sons das fábricas, portos, ruas, tratores e reuniões operárias. Para cada qual segundo suas necessidades: tal é o preceito da revolução. A atenção dos construtores de nossa vida deve estar forcada não nas obras de arte perfeitas, mas sim no indivíduo perfeito, cheio de destrezas organizativas e do desejo de vencer os obstáculos que estão no caminho em direção à perícia total da vida.

Uma ciência com estas finalidades está nascendo agora, e está saturando todos os processos de produção da revolução social com o mais alto grau de perfeição, produtividade e felicidade.

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